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A visita cruel do tempo, de Jennifer Egan

O tema do livro não é nenhuma novidade no universo literário: o tempo. Mas parece impressionar ainda mais quando um autor se revela capaz de construir uma narrativa atraente e, mais que isso, apaixonante, a partir de um sujeito já explorado, tratado sob tantas perspectivas. É o que faz Jennifer Egan. “O peso do que havia acontecido ali mais de vinte anos antes continuava levemente presente (…).”

A Visita Cruel do Tempo está dividido em capítulos; cada um deles, como disse a própria autora em entrevistas, se assemelha a um conto. São episódios independentes da vida de diferentes personagens que formam uma história de idas e vindas temporais, na tentativa de explicar por que cada um se tornou o que se tornou. “ – Eu vim aqui pelo seguinte: quero saber o que aconteceu entre A e B. (…) A era quando a gente tocava na mesma banda e corria atrás da mesma garota. B é agora.”

O título já adianta, mas engana: o que faz do tempo uma visita cruel são as escolhas. As portas que cada personagem abre e fecha ao longo da história são causas que permitem um leque de possibilidades consequenciais e tornam o livro impossível de deixar de lado. Cruéis também são as cenas e os diálogos, que Jennifer Egan constrói com proeza. O livro é físico: não há consequências sem causas; ação e reação. O que não significa que o tempo não passe rasteiras ou não permita reviravoltas.

Escritora exímia, Jennifer Egan é ousada. Narra em primeira, terceira e na difícil e pouco explorada segunda pessoa. “Você põe um comprimido na boca e guarda os outros dois de volta no bolso. Começa a sentir o efeito do ecstasy assim que entra na boate.” Em uma construção de flashbacks, em diferentes tempos e espaços, a história flutua entre a São Francisco da década de 1970 e a Nova York de um futuro próximo. A trama é difícil de ser resumida, já que o fio condutor é apenas uma desculpa para expor um mural de personagens, todos envolvidos com o universo musical.

Jornalista especializada em música, a autora conduz a história pela trajetória da banda fictícia Conduits, revelada pelo produtor musical Bennie Salazar – um sujeito que integrou uma banda de punk e se tornou um executivo de sucesso até que as evoluções tecnológicas que engoliram a música e os músicos o obrigaram a se reinventar, mas inevitavelmente o tornaram irrelevante. “Bennie fechou os olhos, sentindo cada parcela do corpo ser revigorada pela ação palpável de escutar.”

Bennie é uma espécie de discípulo de Lou, um figurão do universo pop da música, cheirador e que está sempre às voltas com jovens namoradas e com os filhos – vindos de diferentes relações. “Lou é um daqueles homens cujo charme irrequieto deu origem a um rastro de problemas pessoais que praticamente se pode ver atrás dele.” Nessa rede de personagens ainda vale destacar Scotty, um guitarrista excelente mas fracassado (“As coisas tinham ficado meio emperradas na minha vida.”); e Sasha, a assistente cleptomaníaca de Bennie (“Sasha agora não roubava mais em lojas – suas mercadorias frias e inertes não a seduziam. Só roubava de pessoas.”).

A técnica é o ponto alto do livro e não à toa ele foi premiado com o Pulitzer em 2011. A engenhosidade de Jennifer Egan para amarrar essa história é o que envolve o leitor. Assim como as pitadas (às vezes, generosas) de experimentalismo. Um dos capítulos do livro, narrado por uma menina de doze anos, é todo em linguagem de Power Point –uma espécie de diário em forma de esquemas. E o tema que martela nesse capítulo é as pausas das músicas -os silêncios que remetem ao fim, mas ainda não o são. E é nesse silêncio que paira o leitor, esperando pela resposta do que está por vir.

A história, as vozes narrativas, os personagens são tão fluidos quanto o tempo, que passa sem nos darmos conta. No fim do livro, estamos diante do futuro e não há mais nada a perder. Já somos o que nos tornamos e não mais que planejamos ser. “O som agora parecia mais insistente do que nunca: um zumbido grave e profundo, atavicamente conhecido, como se viesse ronronando dentro de todos os sons que Alex havia emitido e colecionado ao longo dos anos: sua pulsação oculta.”

A Visita Cruel do Tempo, de Jennifer Egan. Tradução de Fernanda Abreu. Intrínseca, 333 páginas.

Texto publicado originalmente em 28 de fevereiro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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