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o apocalipse dos trabalhadores, de valter hugo mãe

o apocalipse dos trabalhadores completa, no Brasil, a tetralogia das minúsculas, que colocou o escritor valter hugo mãe em evidência –a sequência é composta ainda por nosso reino, o remorso de baltazar serapião e a máquina de fazer espanhóis. Apesar de ter sido escrita antes de a máquina de fazer espanhóis, a obra foi publicada aqui depois. O rompimento com o conjunto de livros avessos às letras maiúsculas –inclusive com o nome do próprio autor grafado em minúsculas– veio com a publicação de O Filho de Mil Homens, quinto romance do escritor, também já publicado no Brasil.

Se a ideia de valter hugo mãe era aproximar a narrativa da oralidade e da informalidade ao usar minúsculas, a missão foi concluída com sucesso. Em o apocalipse dos trabalhadores ressoam sem hesitação as vozes de maria da graça e de quitéria, melhores amigas, protagonistas do romance. Mantendo o tom de crítica social que é uma das marcas de sua obra, hugo mãe desmembra a rotina árdua das trabalhadoras, que se dividem entre a sobrevivência, os amores, os medos e a esperança. “ela prosseguia pelas ruas acima e abaixo à espera de uma palavra mais otimista, alguma esperança de que, no depauperado interior, ainda haveria lugar para uma trabalhadeira de braços, sem nojos nem medos e muita necessidade de dignificar o fim da sua vida e o início tão definido de sua morte.”

maria da graça é empregada doméstica na casa do senhor ferreira, por quem ela nutre amor e ódio. Mesmo tendo um relacionamento com o patrão (apesar de ser casada com augusto), a personagem tem sonhos recorrentes de que ele a mataria. “a maria da graça insistia, mas morri sem vontade, foi o velho, por mim estava ainda a ganhar a vida, que não sou mulher de fugir a nada.” quitéria, amiga e confidente de graça, convidava-a a fazer trabalhos como carpideira: as duas ganhavam para chorar em enterros de desconhecidos. “amanhã às nove já lá estarão as pessoas e o funeral é às onze. vai ser dinheiro fácil.”

Os diálogos entre as protagonistas, ora cômicos, ora existenciais e filosóficos, são um destaque no livro. Uma sabedoria simples e mundana, que dá o tom em debates sobre a vida e –como não poderia deixar de ser em um livro de valter hugo mãe– sobre a morte. “pois, coitada, morrer de amor, à espera. isso de esperar é que me dói. morrer de amor tem de ser no ato, isso, sim, é morrer de felicidade.”

Na obra, vida e morte aparecem como constantes possibilidades de dor e de alívio. A vida e a rotina, tão humanas, são doloridas. A morte, um descanso –ou, mais do que isso, uma alternativa. O caminho entre uma e outra é curto e tênue. “há uma facilidade tão aparente de ressurreição quando as pessoas acabaram de morrer. estão ali tão direitinhas, tão parecidas com o estarem vivas, e subitamente notamos que não podem se mexer nem dizer mais nada, mas se o fizessem seria tão natural, pensava a maria da graça.”

No entorno do enredo, estão andriy, um imigrante ucraniano que se envolve com quitéria; os pais dele, que ficaram na Ucrânia (ele com mania de perseguição e ela uma mulher em eterno esforço de se conformar com a loucura do marido e a distância do filho); o próprio senhor ferreira, um homem culto, mas com um traço asqueroso no tratamento à empregada; e o cachorro, com o simbólico nome de portugal –um cão que passa sem ser notado, beirando o desprezo. “é estúpido. o pequeno vadio não a largava (…). maria da graça mal o percebera de início. apenas ao cabo de uns bons minutos se fez luz na sua cabeça acerca daquele pequeno retângulo castanho que a ia acompanhando.”

São personagens em uma batalha diária para não perder a humanidade diante de um mundo engrenado e sufocante. Os dilemas devolvem a eles a individualidade que o trabalho leva embora. No papel de trabalhadores, são substituíveis; no de peões do jogo da vida, não. Mas às vezes, para continuar na disputa, precisam adotar a lógica automática da frieza.  “a felicidade das máquinas, pra não sentir senão através do alcance constante de cada meta, sempre tão definida e cumprida quanto seria de esperar de si.”

o apocalipse dos trabalhadores, de valter hugo mãe. Cosac Naify, 185 páginas.

*Texto publicado originalmente em 11 de junho de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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