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O africano, de Le Clézio

Olhar para o espelho é um constante exercício de memória. Reconhecer quem está no reflexo é mais do que isso. Compor um rosto e um corpo depende da nossa capacidade de assimilar experiências, impressões e sentimentos que vão além da objetividade cronológica dos fatos. Recontar esse repertório é mais do que isso. Compor um romance com lembranças pessoais depende da nossa vontade de saber do que somos consequência e da nossa necessidade de nos submetermos a um olhar estrangeiro de nós mesmos. “Tenho coisas a dizer deste rosto que recebi em meu nascimento.”

Em O Africano, Jean-Marie Gustave Le Clézio, um francês com origens na Ilha Maurício, resgata memórias de infância, lembranças íntimas de quando deixou Nice, no sul da França, com a família para viver na Nigéria, onde o pai atuava como médico. É a primeira vez em que ele encontra o genitor, que ficou afastado da mulher e dos filhos enquanto trabalhava em parte das colônias britânicas no continente africano durante a Segunda Guerra. Ainda criança, o autor só se dá conta da existência de um Império Britânico porque o pai o traduz. “Eu era um menino, não mais que um menino, e o poderio do império me era muito indiferente. Mas suas regras eram postas em prática por meu pai, como se lhe dessem sentido à vida. Ele acreditava na disciplina, em cada gesto diário (…)”.

Ao relatar a chegada ao lugar onde virou um estrangeiro, Le Clézio enfatiza as passagens. É em Ogoja e em outras cidades da Nigéria que ele percorre o caminho da infância para o mundo de gente crescida. “Partindo para a África, mudamos de mundo.” O autor vai da vida luxuosa em Nice para as tardes livres e selvagens. “Corríamos quase sem parar, perdendo fôlego, pelo alto capinzal que nos fustigava os rostos na altura dos olhos, guiados pelos caules das grandes árvores.” E é também ali que a idealização do pai vira um pai de verdade; um homem marcado pela guerra e pela miséria que assolam o povo que o rodeia. “Quando tento compreender o que mudou esse homem, a ruptura ocorrida em sua vida, é na guerra que eu penso. Houve um antes e um depois.”

As memórias que compõem o livro oscilam entre a impressão de um lugar aconchegante e familiar – “(…) parece-me que em nenhum outro lugar senti tal impressão de família (…)”, e de um continente de realidade crua e cruel – “(…) uma África real, de grande densidade humana, dobrada pelas doenças e as guerras tribais.” A combinação desses registros constrói um pai que finalmente ele reconhece, um pai composto das mesmas esperanças e angústias que ele relata com detalhes, e reconstrói um narrador que já não se vê naquelas páginas. “É à África que quero incessantemente voltar, à minha memória de criança. À fonte de meus sentimentos e de minhas determinações. O mundo muda, é certo, e aquele que lá está, em pé no meio do alto do capinzal da planície, (…) aquele lá está tão longe de mim que não há história ou viagem que me permita alcançá-lo.”

Ao pôr na estante O Africano, o leitor se permite entender a obra de Le Clézio, que recebeu o Nobel de Literatura em 2008, a partir de um olhar semelhante ao que ele se impõe como ficcionista: a de um constante viajante, que faz das cenas passageiras marcas perenes na sua construção pessoal, buscando o que há de forasteiro e o que há de natural, sem esquecer que o estrangeiro no mundo é ele.

O Africano, de J.M.G. Le Clézio. Tradução de Leonardo Fróes. Cosac Naify, 116 páginas.

Texto publicado originalmente em 29 de janeiro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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