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Sagrada família, de Zuenir Ventura

Na ficção, Zuenir Ventura não abandona o jornalismo. A fluência do texto, o rigor com as palavras (às vezes exagerado a ponto de usar aspas quando ele teria total licença para usar qualquer vocábulo fora da norma culta) e as informações históricas de fundo nos lembram que o autor de Sagrada Família é o mesmo de 1968: o ano que não terminou, de Chico Mendes: crime e castigo e de outros livros que exigiram uma apuração dos fatos e uma investigação de relatos. Dessa vez, Zuenir investigou a própria memória, para fazer esse romance cheio de lembranças pessoais.

É uma história contada por Manuéu, um narrador que retrata a família na fictícia Florida, no Rio de Janeiro. Na década de 1940, tias e primas se tornam o foco dessa história cheia de toques provincianos. O destaque é para tia Nonoca, de 37 anos -linda, viúva e fogosa. Nelson Rodrigues adoraria esse poço de hipocrisia, que morre de medo de as filhas ficarem malfaladas, mas não perde a chance de ir à farmácia tomar injeções diárias. “Eles não tinham por que rir do que disseram. Injeção sempre me pareceu coisa séria. Mas riram. Ela, então, de um jeito malicioso, como eu nunca tinha visto antes.”

Tia Nonoca é mãe de Cotinha e Leninha, de 15 e 14 anos, adolescentes que começam a descobrir o flerte e enchem a narrativa de uma constante tensão sexual –tudo na busca por um amor, ou um marido. Nos namoricos, se viam divididas entre o desejo e a moralidade. “Leninha não se conformava com a notícia. Embora ela mesma já tivesse sido beijada umas duas vezes, ainda que muito rapidamente, era difícil acreditar que a irmã mais velha, puritana, que vivia dando lição de moral, se deixasse beijar por alguém que nem noivo era, sequer lhe pedira a mão.”

A rotina de Florida vai sendo preenchida por personagens-tipo, que toda comunidade, real ou não, conhece bem. Tem a cafetina Dona Edith e as meninas da Vila Alegre – ali “(…) grande parte da juventude floridense, pelo menos os que podiam pagar, realizava o seu ritual de iniciação sexual.” Há também a figura alcoviteira, que nesse caso é Pepe, um dos cinco filhos do dono da Leiteria e Sorveteria Favorita, que “(…) além de fabricar o mais saboroso sorvete e servir o melhor café da cidade, funcionava como uma central de notícias.” Pra completar, há o resto da família do narrador, irmãos de tia Nonoca, que se reúnem para resolver problemas uns dos outros e palpitar com pitadas de decência nas decisões de cada um. Quando não chegam a uma conclusão moral, aceita por todos –conselheiros e aconselhado– o problema vai à segunda instância, a mãe, que dá a palavra final.

É no ambiente familiar hipócrita e à beira de um ataque de nervos, longe de qualquer referência sacra além do título, que nosso personagem cresce e relata os casamentos, as solteirices, as mortes, as traições, a ingenuidade e a perda dela. O tom é sempre sugestivo, mas contido. Não há ousadias e diálogos rodrigueanos, mas há personagens e cenários que retratam, com sensibilidade, nada além da vida como ela é.

Sagrada Família, de Zuenir Ventura. Editora Alfaguara, 228 páginas.

Texto publicado originalmente em 10 de janeiro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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