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Barba ensopada de sangue, de Daniel Galera

Demorei para processar a densidade de Barba Ensopada de Sangue, de Daniel Galera. Não à toa o autor é considerado uma promessa da literatura brasileira contemporânea. É uma obra sem meio termo. A qualidade da narrativa é inegável, a construção dos diálogos é ponto de destaque e as minúcias da descrição são a marca. A história é violenta do começo ao fim, os personagens aguentam fardos pesados, sem nenhum tipo de recompensa.

A trama, escrita em ritmo ágil, tem como protagonista um triatleta formado em educação física e professor de natação que vai a Garopaba, no litoral de Santa Catarina, depois que o pai morre por suicídio. Sem manter relações próximas com a família -com o irmão ele nem fala-, busca refúgio em um apartamento à beira-mar e começa a dar aulas em uma academia local. Vive com a cadela Beta, que pertencia ao pai.

O diálogo que abre o livro é arrebatador. “(…) Tô de saco cheio. Acho que começou com aquela cirurgia de hemorroida. No meu último checape o médico viu os exames e me olhou com uma cara de morte, de decepção por toda a raça humana. (…) Tô começando a ficar doente e não to a fim.” Na conversa entre o triatleta e o pai, ele anuncia ao filho que vai se matar, pede que a cadela seja sacrificada quando ele morrer e conta a história do avô do protagonista, que viveu em Garopaba, foi esfaqueado em uma festa enquanto a luz foi apagada, mas cujo corpo nunca foi encontrado. A história do professor de natação no litoral catarinense é entrelaçada com a do avô. Ele quer desfazer os mistérios que rondam a suposta morte do velho, chamado de Gaudério. O percurso dos dois se confunde: o triatleta dá passos e comete erros semelhantes aos do avô. Para completar, são fisicamente muito parecidos. Às vezes, o autor sugere que as histórias se repetem – quem sabe até não é também Gaudério o nome do nosso protagonista inominado.

As descrições, cheias de detalhes sensoriais, nos remetem ao mundo do personagem, que sofre de um problema neurológico raro e não consegue armazenar na memória, mesmo que por pouco tempo, o rosto das pessoas. Ele desenvolve artifícios para reconhecer cada um – particulariza o cabelo, as mãos, o andar; e avalia o contexto. “Há o calor, o cheiro e uma memória nítida de todas aquelas coisas que prescindem não apenas de um rosto mas da própria visão. O peso é uma de suas sensações favoritas.” Conhecer o que rodeia cada figura nos permite um reconhecimento à moda do atleta.  Todos que convivem com o protagonista conhecem essa condição, mas como ele vive fechado na construção da própria identidade poucos conhecem o que ele não consegue esquecer. A culpa por não ter sacrificado Beta, o último desejo do pai; o orgulho que o leva a não perguntar quem é quando demora a reconhecer alguém; e a angústia por não conseguir informações sobre o avô, que o empurra a uma investigação empírica.

Na história, há amor, há tristeza, há sofrimento, há traição. Tudo escancaradamente disfarçado pela vontade do protagonista de ser uma ilha, um desejo tão intenso de não depender de ninguém que faz com que, vez ou outra, o atleta beire um psicopata do bem, que passa incólume pela dor, pela amargura e quase pelo inverno melancólico de Garopaba. Uma combinação provocadora, de um vazio tão profundo, que dá vontade de pôr o livro de lado, de volta na estante, mas a narração de Galera não deixa. Dá vontade de saber o final. Um fim nada previsível -sem alívio, sem resignação, sem consolo. “(…) vai ser mais rápido do que tu tinha imaginado. Já acabou.”

Barba Ensopa de Sangue, de Daniel Galera. Editora Companhia das Letras, 422 páginas.

Texto publicado originalmente em 02 de janeiro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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