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Claraboia, de José Saramago

Uma janela para a vida e para a obra de José Saramago. Claraboia, de 1953, foi o livro que ninguém quis publicar. Sob o pseudônimo de Honorato, o autor tentou uma editora, que rejeitou a obra e, mais tarde, quando Saramago era muito mais do que um sobrenome estampado na capa de um livro, a editora voltou atrás, fez uma proposta. Mas aí já era tarde. Claraboia foi guardado para que fosse publicado apenas após a morte do escritor português.

Logo de cara temos a pista do jogo de dentro e fora que Saramago expõe nessa obra. “Por entre os véus oscilantes que lhe povoavam o sono, Silvestre começou a ouvir rumores de loiça mexida e quase juraria que transluziam claridades pelas malhas largas dos céus”. Quem nos convida a entrar é Silvestre, o sapateiro que mora no térreo de um prédio movimentado. Generoso, ele deixa muitas portas abertas. Silvestre vive com a esposa, Mariana. “Duas crianças, sem tirar nem pôr.” O casal aluga um quarto para Abel, um andarilho, que conhece “os perigos e as vantagens da liberdade e da solidão.” E quando Silvestre abre a porta para Abel, ele deixa entrar também a poesia – único apego do inquilino apegado à liberdade.

Se nos sonhos de Silvestre a claridade vinha de cima, em Claraboia ela vem de baixo. É o sapateiro, figura de sabedoria simples, que põe luz sobre a narrativa. As histórias de cada um dos moradores daquele pequeno e modesto edifício de Lisboa são guiadas pelo olhar e pelos ouvidos de Silvestre. Pelas portas, janelas e frestas, ele nos encaminha para dentro das casas. Conhecemos a espanhola Carmem, que odeia o marido e disputa com ele o amor do filho; a bela Lídia, que vive sustentada por um amante rico e mais velho – e sustenta a mãe, pela obrigação, com o dinheiro que vem dele; somos apresentados a Adriana e Isaura, duas irmãs que vivem com a mãe e com a tia, duas jovens que apreciam os livros e a música clássica; e tantos outros vizinhos. Não é Silvestre quem conta a história, ele está nas páginas de igual para igual com os outros moradores. Mas é ele, observador, quem inspira o percurso.

Os registros, quase fotográficos, dão pistas sobre a rotina, os valores e o caráter dos personagens. A cada cena, cai uma camada dos indivíduos retratados. A humanidade, marca que permaneceu desde Honorato até Saramago, mostra o rosto. Dos instintos de Ensaio sobre a Cegueira à possibilidade de errar e amar de Evangelho Segundo Jesus Cristo, os traços mais humanos que um personagem pode ter estão em Claraboia. A motivação para a vida, a admiração pelo belo, o desejo sexual, o ódio, a culpa, as tradições, a moralidade. O que há de mais Humanidade em cada um de nós.

Ainda embrionárias, estão em Claraboia as primeiras metáforas do escritor português. Talvez por humildade de autor iniciante, parece que ele prefere deixar na boca dos personagens, nos diálogos explícitos, as lições de vida e as descobertas brilhantes sobre o que é ser humano -o que nos livros futuros virá na forma de saborosas subjetividades.

Por enquanto, tudo é escancarado: as pontuações são usadas no extremo, com travessões, exclamações e pontos finais. Tudo de bandeja para o leitor, que sabe quando deve se espantar, questionar ou silenciar. Saramago parece estar testando a língua, os recursos, experimentando o uso de todo e qualquer símbolo gráfico. Mas somente um conhecedor profundo poderia brincar com o idioma e com as regras como ele fez mais pra frente.

É inevitável ler Claraboia buscando entender os primeiros passos de José Saramago, tentando encontrar os primeiros indícios de consagração do único Nobel de Literatura de Língua Portuguesa. E as dicas estão de fato nas páginas da obra, mas sutis, delicadas, como a proximidade que nós, leitores, conseguimos estabelecer com Honorato, um autor mais mundano e menos gênio. É o passado jogando luz sobre o futuro. Quem olha por Claraboia enxerga o princípio do Saramago que se eternizou: o dos recursos literários sofisticados, dos silêncios de pontuação, das metáforas elaboradas e das doses de ateísmo, de humor ácido e de subversão. Uma Claraboia que ilumina o túnel da genialidade.

Claraboia, de José Saramago. Companhia das Letras, 384 páginas.

Texto originalmente publicado em 12 de dezembro de 2012.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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