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Sangue no olho, de Lina Meruane

Sangue no olho é a estreia da chilena Lina Meruane no Brasil. Chegou tarde, mas ainda bem que veio (já separe um cantinho da estante). O romance tem tom autobiográfico e caminha por um tema recorrente na obra da escritora: a doença. Os excessos, as ausências, as falhas e os limites no corpo aparecem de forma envolvente, questionadora e angustiante. Um drama pessoal narrado em primeira pessoa. “Lina? Levantei uma pálpebra, depois a outra, e para meu espanto havia luz, luz suficiente: a sombra sanguinolenta não tinha desaparecido do olho direito, mas a do esquerdo se precipitara para o fundo. Eu só estava meio cega.”

Os elementos coincidentes entre a vida da autora e da protagonista já começam no nome: a personagem Lucina usa o nome literário de Lina Meruane. Mas a escritora enfatiza que, apesar de a obra ter nascido de uma experiência de fato vivida por ela, a narrativa cai logo na ficção. A personagem é uma escritora que tem a visão deteriorada por um problema decorrente do diabetes, o olho se enche de sangue. Um dia, ela não enxerga mais nada. Chilena erradicada em Nova York (mais uma vez como a autora), Lucina busca tratamento na cidade americana e recorre a um médico que a submete a uma odisseia de exames. “Levantei o rosto esboçando meio sorriso de ódio meticuloso, insultando entre os dentes os músicos de ouvido absoluto, as telefonistas experientes, os cegos de nascença treinados para reconhecer vozes.”

Enquanto aguarda os resultados, ela volta ao Chile e revisita as paisagens que, por mais que já não possa ver, conhece de cor; ruas e caminhos que ela percorre sem dificuldade, a partir de lembranças. Em Santiago, reencontra a família – pai, mãe e dois irmãos. Sem enxergá-los, parece compreendê-los melhor, talvez por entender que a sua cegueira não é a única, mesmo que nenhuma falta de visão metafórica seja páreo para retinas que não funcionam mais.

Ignacio, o fiel namorado, é um apoio importante na trajetória e, mais do que isso, vira o meio de a protagonista trocar o papel de parte frágil da relação pelo papel de dominante. São recorrentes as demandas que ela faz – e ele atende – de provas de amor. É Ignacio também sua janela para o mundo. Pelos olhos dele, ela revê o que já conhece; pelas experiências que propõe a ele, ela descobre um mundo novo, inclusive de sensações e poderes no próprio corpo. “Cá estou. Lá eu vou. Olhando outra vez pela janela do táxi, com o olhar fixo, tentando, da estrada, captar um pouco do horizonte, a silhueta agora oca de duas torres pulverizadas, a linha do céu mutilada junto ao brilho tênue do rio salpicado de estrelas, o néon do History Channel deslumbrante sobre a água. Veja tudo sem ver, vejo tudo através da lembrança do já visto ou através dos teus olhos, Ignacio.”

As possibilidades de retomar a visão, no fundo, Lina sabe serem remotas, provavelmente nulas. Mas uma enfermidade irreversível nos faz contar com o impossível. Junto com a personagem, tentamos negar a doença, empurrá-la para longe e, quando o destino não deixa, ficamos todos com um pouco de sangue nos olhos.

O livro poderia ser uma tentativa de encarar a existência sob outras perspectivas, com outros sentidos. Mas diante da dor de um mundo cada dia mais escuro, fica difícil tomar as redescobertas como aprendizados. A doença é tema duro e endurece a gente. Deixa cego para perspectivas, quando tudo é expectativa. “Faltavam poucos dias para o oftalmologista voltar do congresso e ver o estado terminal de minhas retinas. Talvez na sexta-feira. Estávamos no início da terça. Teríamos três dias para resolver o resto de nossas vidas.”

Sangue no Olho, de Lina Meruane. Tradução de Josely Vianna Batista. Cosac Naify: 192 páginas.

*Texto publicado originalmente em 26 de janeiro de 2016.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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