A flor lilás que brota do aguapé, as folhas verdes boiando sobre as águas de um rio, o entrelaçado de longas raízes – todas imagens que sempre associei a essa planta – em nada remetem ao alagado poluído e sujo atrás da casa de Subhash e Udayan, os irmãos inseparáveis, que nasceram e cresceram nos arredores de Calcutá, na Índia. Foi inevitável pesquisar sobre os aguapés durante a leitura e, fora do meu repertório prévio, algumas metáforas não se esclareceram até que eu o fizesse.
Também chamado de Jacinto d’água, é uma planta considerada invasora, que se espalha com rapidez, sobrevive a águas imundas, servindo de abrigo para uma rica fauna, ao mesmo tempo em que tem uma função essencial: pode ser um filtro natural, capaz de despoluir ambientes aquáticos tóxicos. “A planície inundada ficava coberta de aguapés. A vegetação flutuante crescia desenfreada. Por causa das folhas, parecia uma superfície sólida. Verde contrastando com o azul do céu. (…) Os pobres entravam na água para catar o que desse para comer. No outono, chegavam as garças, penas brancas encardidas pela fuligem da cidade, imóveis no aguardo da presa.”
Foi com Aguapés que a britânica de origem indiana Jhumpa Lahiri foi finalista do Man Booker Prize 2013 e do National Book Award 2013. O livro é bom, por isso chegou tão longe. Não ter vencido, talvez, tenha sido deslize de edição. A narrativa empolga, interessa, envolve, mas por vezes se alonga desnecessariamente, se arrasta. Algumas páginas a menos não fariam mal algum, pelo contrário.
A história é conduzida pelos destinos de Subhash e Udayan. Os irmãos começam a tomar rumos diferentes na década de 1960, quando a Índia vê conflitos e rebeliões eclodirem em seu interior. Em zonas rurais, nasce o Movimento Naxalita, grupo maoista que defende uma revolução popular. É com os rebeldes que se afina Udayan. Enquanto o irmão parte para os Estados Unidos, onde vai se dedicar à vida acadêmica. Os passos de cada um são em direções opostas. Udayan se aproxima da luta armada, da clandestinidade. Subhash se aproxima da institucionalidade, numa tentativa de reconstrução de seu olhar para o mundo, distante dos valores da classe média indiana.
Só uma tragédia familiar motiva Subhash a voltar a Calcutá. Ao chegar, encontra a família maior – agora com a esposa de Udayan – e destroçada. Esforça-se para restaurar os resquícios de vida da casa, mas não dá conta de ficar. Define que seu lugar é Rhode Island, para onde volta levando o que não apagou do passado e as apostas para o futuro. “Como a solução de uma equação que vai aparecendo aos poucos, Subhash começou a perceber um rumo possível para as coisas. Já estava ansioso em sair de Calcutá. Não havia nada que pudesse fazer pelos pais. Não conseguia consolá-los. Viera para ficar com eles, mas no final sua vinda pouca importância tivera.”
Os detalhes sobre a agitação política e social da Índia, as descrições dos costumes, dos trajes, das tradições do país são atraentes na narrativa. Ainda mais porque estão focados em outros aspectos que não a divisão de castas, geralmente explorada. As diferenças culturais entre os personagens que saem da Índia e aqueles com os quais se deparam em terras americanas também atrai o leitor – e, muitas vezes, geram empatia pelo deslocamento que vez ou outra gostaríamos de poder evitar ao elenco, como gostaríamos de fazê-lo a nós mesmos.
A relação de cada personagem com o passado também interessa. O carregamento de culpas e mágoas, de vazios e de lembranças de cada um impulsiona a história. Em ritmos diferentes, os personagens chegam ao futuro, passam-se 40 anos. Em partes do livro, a passagem do tempo é fluida; em outras, volta a se arrastar. Mas o fim vale a pena. Está apoiado no clichê da tentativa de reconstrução e de resgate das falhas que ficaram pelo caminho, mas, com delicadeza, proporciona ao leitor a possibilidade de enterrar o que ficou para trás.
Aguapés, de Jhumpa Lahiri. Tradução de Denise Bottman. Editora Globo, 437 páginas.
*Texto publicado originalmente em 10 de fevereiro de 2015.