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Fugitiva

Logo depois do Nobel de Literatura de 2013 ser entregue à canadense Alice Munro, o escritor americano Bret Easton Ellis publicou em sua conta no twitter que a autora é “completamente superestimada” e chamou a premiação de piada. Alto lá. Munro certamente está no rol da boa literatura, descrita como uma versão contemporânea dos russos (“a nova Tchekhov”), autores que melhor conseguiram captar a alma humana.

Fugitiva é um dos livros que a consagraram como contista. São oito narrativas breves sobre relações e interações. Um ponto alto da entrega do Nobel para Munro talvez tenha sido justamente o reconhecimento do conto, não mais a valorização absoluta do romance. Nesta obra, as protagonistas são mulheres que se vêm obrigadas a encarar o passado para destrancar o presente. Uma delas, Juliet, aparece em três histórias diferentes – o leitor acompanha os efeitos e as consequências de uma decisão. Diferente dos outros contos, nos quais o futuro é apenas sugerido.

Há um trabalho apurado da autora na construção dos personagens, que carregam uma angústia e um desequilíbrio discreto, no geral causados pela mentira. As verdades que deixaram de ser contadas, por elas ou por outros, e as mentiras que cada uma das personagens preferiu deixar pra lá aparecem como fantasmas mais ou menos nítidos. Mas não há desespero. Como cada um de nós, que encaixa na rotina o tempo de sentir os efeitos das escolhas, estes personagens também lidam com o incômodo como parte dos encargos diários. Os contos não são dedicados aos sentimentos, são dedicados à vida humana, que, inevitavelmente, é carregada deles.

A comparação de Alice Munro com os autores clássicos russos vem, possivelmente, também do retrato de costumes que a captação da essência dos personagens acaba por construir. As reações das protagonistas são fruto também de um ambiente social, que se desloca à medida que a paisagem canadense é alterada nas histórias. Mas as figuras são marcantes a ponto dos leitores esquecerem o entorno e se concentrarem em nada mais que a alma humana na página do livro.

Fugitiva, Alice Munro. Tradução de Sergio Flaksman. Companhia das Letras, 380 páginas.

*Texto publicado originalmente em 2 de abril de 2014.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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