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Dias felizes

Não é só linguagem. A estética de Beckett também é de suspirar. Dias Felizes poderia ser um quadro, uma fotografia, uma radionovela. Iria tão bem quanto o texto impresso nas páginas de um livro ou a encenação dele sobre o palco. Ao estampar para o leitor uma imagem que persiste, o irlandês Samuel Beckett sussurra a inércia dos que abdicaram das perspectivas – ou será das expectativas? Bem-vindos à rotina.

A obra é a última, ao lado de Esperando Godot e Fim de Partida, da trilogia que colocou Samuel Beckett na lista de principais dramaturgos da história. Neste livro, como em boa parte de seu teatro, aparecem os personagens limitados ou em frangalhos, as restrições de movimento, a expressão corporal penosa e – o que sempre intriga – a incapacidade ou falta de vontade dos personagens de ocupar um espaço que parece ser infinito. Os cenários becketianos – e em Dias Felizes não é diferente – parecem enormes a ponto de se perder no horizonte, mas a atuação está sempre enclausurada em um pequeno espaço.

Em Dias Felizes, conhecemos dois personagens. Winnie é uma mulher de cerca de 50 anos, que começa o enredo enterrada até a cintura em um pequeno monte. O avançar da história a deixa cada vez mais submersa. Ela fala sem parar (a peça é praticamente um monólogo), na maior parte do tempo como se fosse uma compulsão. O leitor fica perdido na falta de sentido de suas observações sobre o cotidiano e sobre sua vida passada, e na falta de sentido de suas ações imóveis. Enterrada, ela tem ao alcance das mãos apenas uma bolsa, com objetos como um espelho, uma escova e um revólver, a partir dos quais cria uma rotina.

A companhia de Winnie é o marido Willie, de cerca de 60 anos, silencioso e apático, caído atrás do monte. Ela mal consegue vê-lo – tampouco o espectador. Mesmo quando se dirige a ele, a protagonista está, na verdade, falando sozinha, perdida em digressões. Ela quer se lembrar, mas não confia nele para ajudá-la. Winnie pergunta e responde o que precisa rememorar.

A edição da Cosac Naify ainda tem alguns bônus, como as cartas trocadas entre o autor e Alan Schneider, que dirigiu a montagem norte-americana da peça. Os textos enviados por um e outro mostram as interpretações do diretor, as dúvidas sobre o texto, as dificuldades em entender o sentido de alguns trechos e os esclarecimentos de Beckett, com direito a detalhes minuciosos do que deveria ou não estar em cena, a expressão que este ou aquele ator deveria ter e o que a atuação deveria permitir ou não que o espectador captasse – fazendo jus à fama de fiscal de seus próprios textos.

Beckett coloca, de novo, o presente em colapso. Um tempo que passa por inércia, com anestesia, sem emoção. Paramos para pensar que rotina é essa que usamos para nos inebriar e quais as palavras escolhidas para mascarar o nosso congelamento. Olhar por trás do discurso é entender o que paralisa e o que liberta. As palavras são também o que o leitor/espectador vê, sente e ouve em cena. A falta de movimento é ação pura, que chega a atropelar os inertes.

Dias Felizes, Samuel Beckett. Tradução de Fábio de Souza Andrade. Cosac Naify, 131 páginas.

*Texto publicado originalmente em 11 de fevereiro de 2014.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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