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Vermelho amargo

Sangue, Chapeuzinho, batom, coração, cereja, tomate e, com algum esforço, xarope contra tosse. É o que vermelho me lembra. Nessa ordem. Intenso, mas não amargo (nem o xarope, que, ao contrário, era exageradamente doce). Diferente de Bartolomeu Campos de Queirós, que carrega o vermelho de lembranças, de memórias, de melancolia e de dor, muita dor. E o autor avisa, caro leitor, que é no papel que ele alivia tanto amargor, como dizendo: prepare-se para essas páginas de sofrimento.

O início é logo brusco. A dor primordial fica explícita: a mãe morre. O personagem, também narrador, é ainda criança. E o lugar da mãe é ocupado por uma madrasta, que passa a dividir a casa com ele, com o pai dele e com os cinco irmãos dele. Uma família inteira representada por um tomate. “Oito. A madrasta retalhava um tomate em fatias, assim finas, capaz de envenenar a todos. Era possível entrever o arroz branco do outro lado do tomate, tamanha a sua transparência. Com a saudade evaporando pelos olhos, eu insistia em justificar a economia que administrava seus gestos. Afiando a faca no cimento frio da pia, ela cortava o tomate vermelho, sanguíneo, maduro, como se degolasse cada um de nós. Seis.”

Está aí, bem claro, por que a madrasta nunca será como a mãe. É simples. “Antes, minha mãe, com muito afago, fatiava o tomate em cruz, adivinhando os gomos que os olhos não desvendavam, mas a imaginação alcançava. Isso, depois de banhá-los em água pura e enxugá-los em pano de prato alvejado, puxando seu brilho para o lado do sol.”

A saudade da mãe, a indiferença da madrasta e a ausência do pai, sempre bêbado, fazem doer de formas diferentes cada um dos irmãos. Eles se apegavam ao que tinham de menos dolorido. A irmã maior não desgrudava das agulhas, costurava e bordava sem parar – “(…) não erguia a cabeça quase nunca.” O primeiro irmão mastigava vidro, depois cuspia os vidros triturados, moídos e “(…) e o chão parecia ladrilhado com pedrinhas de brilhante.” E ele, nosso protagonista, era inundado por sonhos e pelo vício de amar, passava os dias tentando encontrar exemplos de amor e procurando explicações no amor para os sentimentos que o preenchiam. Mas nada aplacava a angústia de sentar-se à mesa e ter que encarar o tomate fatiado. “O tomate coroava nossos pratos. Parecia um reino em que o arroz, o feijão, a carne, a abóbora eram os súditos. E o tomate – pedaço de um rei sacrificado – reinava sobre todas as coisas. O tomate insistia em dar sustância às nossas refeições. Desde sempre imaginei a raiva vestida de vermelho, empunhando uma faca.”

O leitor acompanha a evolução familiar à medida em que a fatia de tomate perde um pouco da transparência. Os irmãos vão deixando a casa e a fruta vermelha passa a ser retalhada em cada vez menos pedaços. Isso não aplaca a dor, no entanto; aqui não há alívio. Não, pelo menos, até a própria partida. Depois, cada um constrói seu caminho. “Desconheço o depois de minha despedida. Não se caminha sobre a sombra ao entardecer. (…) Esquecer é desexistir, é não ter havido. Ao me interrogar se tomate ainda há, não me fecho no silêncio. Confirmo que minha primeira leitura se deu a partir de um recado rabiscado pela faca no ar cortando em fatias o vermelho.”

O sofrimento impresso em Vermelho Amargo é lírico. A lágrima do leitor é de compaixão. O livro é belíssimo.

Vermelho Amargo, Bartolomeu Campos de Queirós. Cosac Naify, 69 páginas.

*Texto publicado originalmente em 16 de dezembro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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