Ficção com pitadas autobiográficas. Romance com toques históricos. Narrativas com uma sinestesia concreta. O Monte do Mau Conselho traz três histórias ambientadas na Palestina da década de 1940, antes da Guerra da Independência. São os anos que precedem a criação do Estado de Israel, onde Amós Oz foi criado. “Uma ocasião, na entrada da mercearia, ele se curvou e cochichou nos meus ouvidos que o rei de Israel surgiria breve de seu esconderijo na fenda das montanhas, mataria o alto-comissário e ocuparia seu trono em Jerusalém.”
O ponto em comum entre as três histórias é o menino Uri, que, ao aparecer mais ou menos nos enredos, filtra para o leitor os acontecimentos daquele efervescente momento político. A inocência do garoto dá um toque de lirismo à História. Mas a candura infantil não livra o menino do engajamento político: ele quer participar dos acontecimentos e executar tarefas que envolvam a construção do que viria a ser a nova nação judaica, com sonhos mirabolantes de expulsar os ingleses que ocupavam Israel.
Na segunda parte do livro, narrada por Uri, o empenho dessa criança fica evidente. Ele segue os passos de Efraim, uma espécie de mentor político, que Uri vê como um dos salvadores de seu povo, mas que vê Uri como um ajudante para tarefas menores, ainda um garoto. “Dois ou três dias depois Efraim voltou de suas perambulações, queimado de sol e tristonho. (…) O senhor Nechankim e eu reforçamos a guarda no quintal, para que Efraim pudesse descansar pelo menos alguns dias.”
O pai e a mãe – de Uri e de outros personagens – aparecem sem nomes, com Pai e Mãe em maiúsculas, como se o papel familiar bastasse para identificá-los como os porta-vozes de um fim comum para todas as famílias: a infelicidade. Eles refletem a melancolia e a fantasia. Relembram ou, quando não há, recriam as boas memórias da Europa, a terra-natal da qual foram expulsos senão pelos nazistas, pelas lembranças insuportáveis do Holocausto. “Toda a vizinhança se reuniu, emocionada, no quintal da casa. Atônito e cansado lá estava o Pai, de calças curtas cáqui e camiseta, erguendo o olhar atarantado para a copa da figueira. Como parecia inocente e desamparado seu rosto sem os óculos redondos.”
Apesar da tristeza que permeia O Monte do Mau Conselho, é reconfortante imaginar cenas tão provincianas. Descrições que nos fazem imaginar o cenário desértico, as roupas próprias para um trabalho rural e manual, as saborosas combinações mediterrâneas à mesa e as nuances do bronzeado que naquela época representava força e coragem. Sem contar a naturalidade com que as histórias aguçam a sensibilidade e os sentidos. “Um cheiro marrom e úmido pairava no quarto. Em seis diferentes vasos, pequenos e grandes, rasos e retorcidos, feneciam os gladíolos do fim de semana anterior. Todas as janelas estavam fechadas por causa do vento ou dos sons da noite. (…) Madame Iabrova pôs então o gramofone para funcionar.”
O que angustia, conforme a história caminha, é saber que aqueles personagens que já carregam tantas dores e sonham com uma nação, nem sequer imaginam que engatinham para um novo conflito que parece insolúvel. E é provável que o autor, ao escrever o livro em 1976, tampouco dimensionasse a longevidade sanguinária dessa disputa. É inevitável chegar ao fim e questionar quem são os personagens reais dessa narrativa, israelenses e palestinos. Como falar da guerra depois de estar nela? Talvez o dicionário tenha lacunas para o assunto. Talvez por isso Amós Oz, um pacifista que já esteve em combate, prefira o recorte poético de tantas batalhas.
O Monte do Mau Conselho, Amós Oz. Tradução de Paulo Geiger. Companhia das Letras, 273 páginas.
*Texto publicado originalmente em 6 de novembro de 2013.