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A história do pranto

“Numa idade em que as crianças ficam desesperadas para falar, ele pode passar horas só ouvindo.” No princípio, não era pranto. Um silêncio que pode ser fruto da sensibilidade exagerada ou da inocência excessiva. O personagem sem nome que tem só quatro anos é quem começa o recorte pessoal da história recente da Argentina. O escritor Alan Pauls nos insere em um contexto de ditaduras e revoluções sob o olhar desse pequeno observador, que, à medida que cresce, quer aprender a chorar.

Acompanhamos em um relato breve o crescimento da criança do início do livro, filha de pais divorciados, moradora de um bairro de classe média de Buenos Aires. Na adolescência, rodeado por aromas revolucionários, o personagem não consegue se emocionar com os golpes, com as surpresas. Em um ponto alto do livro, ele vê o amigo chorar diante da televisão, ao receber a notícia da derrubada do governo de Salvador Allende, no Chile, mas faltam-lhe lágrimas.

Mais tarde, o protagonista depara-se com um cantor de protesto regressado do exílio, cantando em um pub, mas tampouco vê eficácia no pranto, mesmo tendo desenvolvido uma náusea pelas canções de protesto, mesmo vendo ser criada sua primeira fobia – mesmo tendo realizado o que “talvez seja o grande acontecimento político de sua vida.” “Ouve esses versos e descobre qual é a sua causa, a causa pela qual milita desde que faz uso da razão, desde essa idade em que as crianças ficam desesperadas para falar e ele, por sua vez, para escutar, e a descoberta o inunda de uma espécie de terror maravilhado, tão desconcertante e novo (…)”.

A obra associa o pranto à dor, à perda, às desilusões. Acontecimentos no universo íntimo do protagonista que talvez nem merecessem ser contados, não fossem um prisma de transformações políticas. É um livro-metonímia. A parte pelo todo; o micro pelo macro. Afinal, assim é a História, bem mais do que está nos livros.

Para preservar seu estilo, que abusa das frases longuíssimas, Pauls prefere um narrador distante, que não se adapta à evolução do personagem. Criança, adolescente ou adulto, preserva o mesmo ritmo, o mesmo vocabulário, o mesmo tom. Se identificamos o momento de vida do protagonista é porque o escritor usa referências que nos permitem fazer associações. “Se existe algo realmente excepcional, isso é a dor. Só uma coisa no mundo pode causá-la, e essa coisa, muito mais do que todas as ações providenciais pelas quais o Super-Homem é reverenciado, é o que ele logo passa a temer, a esperar, a prever com o coração na mão cada vez que volta da banca de jornal, e enquanto caminha sem parar, correndo o risco, como já aconteceu mais de uma vez, de esbarra no que vem pela frente, abre a revista recém-comprada e mergulha na leitura.”

A História do Pranto faz parte de uma trilogia que inclui também A História do Cabelo e A História do Dinheiro, ainda não lançado. Mas foi O Passado que trouxe destaque para Alan Pauls, ao ser adaptado para o cinema por Hector Babenco. Em entrevistas que concedeu nos lançamentos de seus livros, o escritor argentino já deixou claro que toda a sua obra está ligada à história de seu país, mas, mais do que isso, está ligada ao que o autor considera uma característica dos hermanos e chama de valor da intensidade: a busca do pranto e do orgulho no desastre e na autocomiseração.

A História do Pranto, de Alan Pauls. Tradução de Josely Vianna Baptista. Cosac Naify, 85 páginas.

*Texto originalmente publicado em 29 de outubro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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