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Homem no escuro

O escuro é permissivo e perigoso. É nele que Paul Auster caminha. Quando não há luz, a direção dos passos é incerta, mas há menos preocupação com os olhares austeros e críticos. O escuro permite o risco e facilita os tropeços. Homem no Escuro divide as páginas entre os dois. “Luz clara, depois escuridão. O sol se derrama de todos os lados do céu, seguido pelo negror da noite, pelas estrelas silenciosas, pelo vento que balança os galhos. Essa é a rotina.”

O livro tem como protagonista August Brill, um crítico literário aposentado que vai viver na casa da filha depois de um acidente de carro em que quase perdeu uma perna. No claro, ocupa o tempo lendo um manuscrito da filha, Miriam, abandonada pelo marido que foi viver com uma mulher mais jovem, e vendo filmes com a neta, Katya, deprimida pela morte do namorado na Guerra do Iraque. No escuro, ocupa o tempo – que é vasto, em função da insônia do personagem – criando histórias que nunca são escritas. Em Homem no Escuro, o leitor é convidado a reviver a metalinguagem da história dentro da história.

As noites insones de Brill dão origem a uma história distópica que tem como cenário os Estados Unidos que vivem uma guerra civil. Um país que está sob o governo de George W. Bush, mas nunca passou pelo 11 de Setembro. Nesse contexto, Owen Brick é escolhido para uma missão importante no conflito, apesar de não se lembrar de ter sido soldado alguma vez ou de já ter servido em uma guerra. “Calma, diz Frisk, e dá umas palmadinhas na mão de Brick. Você tem todo o direito de ficar confuso. É por isso que estou aqui. Sou aquele que explica para você, que põe os pingos nos is.”

Essa história tem fim abrupto, um pouco sem jeito. Mas se pode fazer parecer que Auster não sabia que enlace dar ao enredo, na verdade faz lembrar que essa é só uma história que o protagonista criou; ele, August Brill, é quem tem as rédeas do livro, começa e termina os fatos quando quer – como nós, leitores, quando nos enclausuramos em certos enredos para fugir das histórias reais.

Eis que chegamos ao que talvez explique a história com tom tão infantil criada por August Brill. Só um enredo assim para afastá-lo das memórias que o escuro parece evocar. Lembranças que revivem erros e remexem dores; o tal do passado. O protagonista já viveu o papel de marido que troca a esposa por uma mulher mais jovem. Mas se arrependeu de ter deixado Sonia, a mãe de Miriam, que agora sofre um abandono semelhante. “Sonia fazia parte de mim de maneira exagerada e, mesmo depois do divórcio, ela continuava presente, ainda falava comigo na minha cabeça – a ausente sempre presente, como eu às vezes a chamo.”

Felizmente, Katya, a neta, sai da inércia de encontrar um sentido nos filmes e se volta para a própria história. Ela questiona o passado do avô e quer saber detalhes – o leitor agradece. São nessas histórias, as “reais”, que está o sumo da obra. Episódios deliciosos, entre banais e profundos, que não mudam quase nada na vida do leitor, a não ser lembrá-lo de baixar as expectativas. Não há obra-prima por aqui; há só histórias. Como na vida. Não é isso o extraordinário?

Homem no Escuro, Paul Auster. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, 165 páginas.

*Texto publicado originalmente em 24 de setembro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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