O País das Neves foi o livro que fez a obra de Yasunari Kawabata deslanchar. O romance foi lançado em 1937, mas sofreu modificações até ser considerado de fato concluído pelo autor, em 1948. A tradução é feita direto do japonês na edição da Estação Liberdade, que também publicou outros oito livros do escritor no Brasil. O País das Neves é um livro plástico, estético, que comove mais pela construção de imagens do que pela história. Os personagens estão entre as imagens, compõem o quadro de paisagens sublimes e delicadas que Kawabata recita nas páginas. “De tão altos os cedros, era preciso envergar o corpo para trás, apoiando as mãos na rocha para avistar-lhes o cimo. Além do mais, os troncos erguiam-se enfileirados em linha reta e as folhas escuras tampavam o céu, criando um silêncio intenso.”
Shimamura é um intelectual bon vivant de Tóquio que vai a uma hospedaria de águas termais nas montanhas, cenário de um triângulo amoroso abstrato, uma relação para bons entendedores. Komako, uma gueixa, e Yoko, uma jovem que vive no povoado, completam o trio. Apesar de ser o protagonista, o personagem masculino se constrói a partir das duas mulheres. Elas é que são descritas, analisadas e contempladas. Shimamura vive fechado em um universo individual com espaço para mais ninguém inteiro, o que sabemos sobre ele são fragmentos da impressão que ele faz do mundo e das pessoas. “Shimamura limitou-se a fazer um recorte isolado dela e concluiu que se tratava de uma moça solteira, dada a impressão que ela lhe causara. Mas talvez seu sentimento tivesse falado alto demais, uma vez que a observara com um olhar pleno de estranheza.”
O que intriga – arriscaria dizer que irrita – o leitor é que, quanto mais frio é o comportamento de Shimamura, mais Komako parece interessar-se por ele. O protagonista é um homem que sabe observar, ressaltar detalhes, enxergar a beleza. Mas nada disso o torna comovido ou comovente, é mais gélido do que o pico das montanhas que o rodeiam. Vez ou outra, parece inerte. Já Komako é o que há de paixão no romance – mas uma paixão sem fogo, discreta, velada. É um retrato conservador, uma foto de um mundo masculino. “Shimamura entrou no kotatsu e, deitado à vontade, derrubou as cinzas do cigarro. Komako rapidamente as limpou com um lenço e lhe trouxe um cinzeiro. Shimamura estampou um sorriso matinal. Komako também sorriu.”
Apesar de participar da cena inaugural do romance, que se passa no trem a caminho das montanhas, Yoko oscila entre a luz e a sombra da história. Ora parece secundária, surge sorrateira, ora traz luz ao romance e aos olhos de Shimamura – é quando Yoko está em cena que Shimamura parece mais humano. “Shimamura não se apercebera de quão atrevido era ao ficar tanto tempo olhando de modo furtivo para Yoko, provavelmente por estar preso à força irreal do espelho da paisagem ao entardecer.”
Um destaque de O País das Neves é a contextualização – os relatos do Japão tradicional, dos costumes de outros tempos. Aprendemos um pouco sobre o treinamento das gueixas, o relacionamento delas com os clientes, a Festa de Expulsão dos Pássaros, sobre o tecido chijimi, a confecção manual dele e o modo como ele era alvejado na neve. “Os chijimi brancos ficavam estendidos diretamente na neve. Esse trabalho era feito entre o primeiro e o segundo mês do calendário antigo, e dizem que para isso usavam as áreas de plantio de arroz e de verduras que ficavam totalmente cobertas pela neve.”
Nesse ambiente alvo e gélido, os três personagens se esforçam para, em primeiro lugar, manter o leitor distante; depois disso, para deixar para trás o que têm de sombrio, de loucura, de passado. É um livro que exige olhos atentos – e não só para que a delicadeza das paisagens seja devidamente apreciada, mas para que os momentos de imprevisto sejam aproveitados. É na brecha de espontaneidade que o leitor vai um pouco mais fundo na alma desses personagens; quando eles se deparam com o inesperado, com o reencontro, com o tranco da vida, com a morte.
O País das Neves, Yasunari Kawabata. Tradução de Neide Hissae Nagae. Estação Liberdade, 155 páginas.
*Texto publicado originalmente em 19 de setembro de 2013.