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1Q84 – livro 2, de Haruki Murakami

O tripé murakamiano se desequilibrou. A perna que sustenta o amor se alongou a ponto de deixar a melhor parte –os jogos de antíteses e paradoxos– como coadjuvante. Tengo e Aomame estão cada vez mais próximos, seguindo a convergência de trajetórias já sugerida no Livro 1. “’Vou encontrar Aomame’, Tengo reafirmou sua decisão. ‘Não importa o que aconteça, não importa que mundo seja esse, não importa quem ela seja.’”

A jornada dos dois está baseada no amor puro e ingênuo que começou quando eles tinham dez anos. O único contato que tiveram foi quando, ainda na escola, Aomame segurou a mão de Tengo. O gesto foi capaz de sustentar o sentimento que ainda carregam, exagero que chega a incomodar –não pela falta de concretude, mas por certo tom piegas que o narrador assume. “Ela havia segurado com muita força, e ele ainda sentia nitidamente na mão esquerda o toque de seus dedos. Toque que perdurou por alguns dias. Mesmo após deixar de senti-lo na pele, tornou-se uma marca no seu coração.” Uma relação mutuamente platônica, já que, apesar do amor recíproco, nenhum deles conhece os atuais pensamentos e intenções do outro.

No livro 2, Aomame deve dar continuidade à missão que recebeu anteriormente. “- Como acabei de dizer, não tenho nada a perder. Trabalho, nome, a vida que tenho em Tóquio; isso tudo não tem nenhum significado especial. Não tenho nenhuma objeção – disse Aomame.” E Tengo começa a sofrer os desdobramentos de ter concordado em reescrever sigilosamente o livro de uma jovem autora disléxica. Os episódios fantásticos de Crisálida do Ar começam a ter repercussões fora das páginas. “As duas luas provocaram em Tengo uma leve sensação de tontura, quase de vertigem.”

Murakami revela mais detalhes sobre o Povo Pequenino e a sociedade secreta que eles supostamente controlam. Aparece com veemência nessa parte da obra a figura do Líder, o homem usado como porta-voz pelas pequenas criaturas misteriosas e que, por isso, é visto como sagrado pelos membros do grupo. No próprio discurso, ele é defensor de uma causa maior e vítima da vontade divina e superior. “Uma pessoa que escutava a voz de Deus. Mas grande parte daquelas vozes não eram de Deus. Talvez fossem do Povo Pequenino.” Sob a perspectiva dos outros personagens, é frio, abusador e manipulador. “Independentemente das perversidades que ele houvesse praticado, aquele homem realmente lembrava um navio enorme.” As várias facetas do Líder parecem uma tentativa de resgatar a obra do maniqueísmo em que ela submerge em tantos momentos.

Ao contrário do que costuma fazer, desenvolvendo personagens profundos, desta vez Murakami estabelece categorias estanque. A divisão entre bem e mal, mesmo mascarada pela ideia de alternância, arrisca fazer do livro um texto simplista. “O importante é manter o equilíbrio entre o bem e o mal, que sempre mudam de lugar. Se a balança pender para um único lado, fica difícil manter os valores morais no plano da realidade. Pois então, o bom é o equilíbrio.”

Mas é verdade que na fluidez e na agilidade da narrativa Haruki Murakami continua exemplar. O suspense em torno da história que se desdobra em histórias menores (ou ao contrário) é o que segura o leitor até o fim e o faz querer a terceira parte. É inevitável querer saber, afinal, o que é real e o que é devaneio e entender o que está por trás do mundo disparatado de 1Q84.

O outro ponto alto do Livro 2 é justamente a ênfase no surreal. Se no primeiro volume Murakami destaca as influência de George Orwell –que ainda é lembrado na segunda parte (“O Grande Irmão está olhando para você.”)– agora o que ganha contornos é a obra de Lewis Carroll. O narrador faz referências diretas. “Nada havia de diferente, de anormal. Não havia Rainha de Copas, Morsa ou o Chapeleiro Maluco.” A passagem de Aomame por uma escada na rodovia foi como a entrada de Alice no buraco que a levou ao Mundo das Maravilhas. No universo criado por Murakami, em vez de um coelho apressado, quem lembra o leitor de que o tempo está correndo são as pequenas criaturas que aparecem vez ou outra, recolhendo fios de ar para montar uma crisálida, sempre indicando uma nova virada iminente na história.

Mas diferente de Carroll, confortável no nosense, Murakami se debate com o desafio de fazer as palavras ditas terem sentido e os elementos que uma vez apareceram na história serem usados. Era esse o objetivo de Tengo ao reescrever Crisálida do Ar e é esse o jeito do autor de 1Q84 de fazer literatura. “E, como já disse Anton Tchekhov, se na história aparece uma pistola, em algum momento ela deve ser usada. Esse é o significado de como se entende uma história.”

1Q84 – Livro 2, de Haruki Murakami. Tradução de Lica Hashimoto. Alfaguara, 373 páginas.

*Texto publicado originalmente em 03 de maio de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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