Essa é a história de John Marcher e May Bartram. Não da vida deles, mas da história deles. O autor, Henry James, deixa claro nessa obra: não é preciso viver para ter uma história, basta que outra pessoa viva-a por você ou basta acreditarmos que vivemos a história que pensamos ser nossa. Muita coisa pra não dizer nada concreto? A Fera na Selva é assim. Um enorme diálogo entre um homem e uma mulher, em que muitas coisas são ditas, mas, no fundo, quem dá o tom é o silêncio. O leitor passa o livro esperando a palavra final.
Mais desencontros do que encontros marcam a trajetória dos dois personagens, apesar de eles estarem juntos. Quando Marcher e Bartram se reencontram, ele não se lembra da confidência que fez a ela dez anos antes. O segredo fundamental do livro. O protagonista tem a sensação de que algo importante está para acontecer. “Algo estaria à espreita dele, por trás de uma curva no desenrolar dos meses e dos anos, como uma fera na selva. Pouco importava se a fera à espreita estava destinada a matá-lo ou ser morta por ele. O ponto decisivo era o bote inevitável da criatura; e a lição decisiva era que um homem de valor não se permite partir acompanhado de uma mulher a uma caçada de tigres. Essa foi a imagem que acabou fazendo da própria vida.”
Na espera de um rugido que sinalizasse o fim, John Marcher abriu mão de se apaixonar pela companheira de confidências. Ele acredita fazer parte do sacrifício desta missão selvagem preservar a dama que lhe é leal e lhe dedica o amor, acreditando-se altruísta e generoso nessa não-relação. “A verdadeira forma que aquilo deveria assumir, nas bases que se impunham, era a forma do casamento entre eles. Mas o diabo, no caso, era que as próprias bases do relacionamento colocavam fora de questão o casamento.” Os personagens entregam-se a uma fidelidade virtual, que se concretiza na forma da espera. Ele espera o bote; ela começa esperando que o amado termine e termina esperando que o amado comece –e que se entenda como começo o primeiro passo para a vida. “Era o que ele via, por assim dizer, em lívido horror, à medida que as peças se encaixavam cada vez mais.”
A Fera na Selva é pura insinuação. A narrativa prende o leitor justamente porque dá pistas, o faz entender, mas não satisfaz a curiosidade, por não dizer precocemente com todas as letras. Henry James é um narrador exemplar e constrói sua obra com a fluidez que permite absorver o livro de uma vez, em poucas horas. May Bartram conquista o leitor pela doçura, mas o angustia pela excessiva paciência. Joe Marcher intriga o leitor pela capacidade de travestir o medo de impassividade diante do perigo iminente. “’(…) Não é uma questão sobre a qual eu tenha alguma escolha, sobre a qual eu possa decidir uma mudança. Não é uma questão que possa ser mudada. Está nas mãos dos deuses. Estamos à mercê da nossa própria lei – é aí que estamos.’”
Na edição especial da Cosac Naify, um posfácio de Modesto Carone traz pontuações importantes para elucidar o universo jamesiano e a construção de A Fera na Selva -além de nomear a qualidade do livro. Carone diz com propriedade: “A obra é universalmente considerada como uma das maiores já concebidas e executadas pelo autor, e não é exagero qualificá-la de magistral no gênero.” E assim é.
A Fera na Selva, de Henry James. Tradução de José Geraldo Couto. Cosac Naify, 79 páginas (mais um posfácio de Modesto Carone – 9 páginas).
Texto publicado originalmente em 15 de abril de 2013.