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Paris não tem fim, de Enrique Vila Matas

O repertório do catalão Enrique Vila Matas parece infinito. São referências que não têm fim. Nomes da literatura, do cinema, do teatro, das artes plásticas aparecem na forma de personagens, causos e frases. O leitor às vezes se perde, já que nem todas as indicações são familiares. Mas o próprio autor dá a chave para que ninguém se desespere. “Não gosto dos relatos com histórias compreensíveis. Porque entender pode ser uma condenação. E não entender, a porta que se abre.” Vila Matas nos convida à leitura e à investigação cada vez que cita um nome que nos é desconhecido.

Paris não tem fim traz como protagonista um escritor cujo nome não sabemos. Convidado a fazer uma conferência, que durará três dias, ele rememora seus tempos de juventude, vividos em Paris, e escolhe a ironia como lente para olhar para o passado. Certo de que se parece fisicamente com Hemingway, enfrenta a constante frustração de ninguém achá-los semelhantes – ou talvez tudo não passe de uma grande ironia. A distância entre os dois começa pelo modo como enxergam Paris. Na capital francesa, Hemingway e seus amigos foram “muito pobres e muito felizes”, como ele escreve em Paris é uma festa. Já nosso protagonista enxerga a cidade-luz como uma cidade cinza.

Durante sua temporada parisiense de dois anos, que coincide com o período da ditadura franquista na Espanha, o protagonista vive em uma água-furtada alugada de Marguerite Duras. Sobrevive com o dinheiro enviado pelos pais, com quem tem uma relação distante. Conhece escritores e artistas exilados e decide escrever seu primeiro livro, A Assassina Ilustrada, nome da primeira obra do próprio Enrique Vila Matas, de 1977. O livro é tão metalinguístico quanto autobiográfico. Em um diálogo com o personagem, o amigo Raúl Escari (um dos que ele conheceu ainda na juventude, em Paris) entende o mote da conferência. “’Ou seja, é uma conferência que terá algo de autobiografia da boemia e de seus anos de aprendizagem literária em Paris’, disse de repente. ‘Pois sim’, respondi, ‘apesar de aprender mesmo eu não ter aprendido muito.’ ‘Tem sua graça’, disse, ‘uma autobiografia também é uma ficção entre muitas possíveis’.”

Entre todas as possibilidades ficcionais, Vila Matas escolhe aquela em que o leitor pode chegar mais perto do escritor. Com a própria literatura em pauta, o protagonista revisita, por exemplo, as dificuldades que teve para concluir seu primeiro livro e deixa que o leitor participe do processo. Ele descreve as etapas, conta o que diz o manual de instruções para escrever dado por Marguerite Duras e compartilha os conselhos que segue. “Ouvi Romain Gary dizer numa conferência que os personagens sempre têm de ser reais para o escritor.”

Apesar de questionar e se deixar questionar pelos obstáculos literários, não se preocupe, o autor nem passa perto de elaborar um ensaio sobre como funciona a ficção – é a ficção em si que está no papel, elaborada como poucas. Vila Matas parece não ter fim na vontade de fazer um romance de experimentação, um romance em que cabe tudo. Dentro de cada capítulo do livro (por sinal, totalmente diferentes um do outro, e desproporcionais no que diz respeito a tamanho, forma e conteúdo) cabem vários livros. Dentro de Paris não tem fim há um romance, um índice da estante de Vila Matas, uma lista de referências literárias e um guia artístico e histórico de Paris.

Paris não tem fim, de Enrique Vila Matas. Tradução de Joca Reiners Terron. Cosac Naify, 242 páginas.

Texto publicado originalmente em 22 de dezembro de 2022.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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