Antonio Prata é cronista dos bons. E em Nu, de botas usa o que faz de melhor: resgata a memória, apura a observação e desloca o olhar. Transfere o ponto de vista para um menino, uma criança. E é de lá, da infância, que o autor olha para as próprias lembranças. O escritor abandona a visão de adulto (com exceção de umas pitadinhas de referência, como para descrever a Vanda, “que vinha do interior de Minas Gerais e de dentro de um livro de Charles Dickens”) para recontar as passagens da infância que formam a obra. Resultado: é de dar muita risada.
O livro é leve – tanto no tamanho (são só 140 páginas), quanto na fluidez (de ler em uma sentada). Dividido em curtos capítulos, cada um com um episódio, Nu, de botas é quase uma catarse coletiva sobre infâncias parecidas com a do autor. O leitor pega emprestado um pouquinho das lembranças e é capaz de se enxergar em muitas das histórias impressas ali. “Eu gostava muito de observar minha mãe escovando os dentes pela manhã: sua mão ia e vinha, rápida e precisa, de cima para baixo, depois fazia movimentos circulares, sem espirrar uma única gota de espuma. Tão diferente de mim, que só sabia escovar na horizontal e salpicava de branco a louça da pia, as torneiras, lambuzava o rosto inteiro. Minha mãe era tão hábil que conseguia até escovar os dentes e andar pela casa ao mesmo tempo – uma de suas façanhas que eu mais admirava.”
É possível que o livro converse mais com gerações específicas. Quem nasceu muito antes ou muito depois do fim da década de 1970 (Antonio Prata é 1977) talvez não se identifique tanto com o pequeno paulistano de classe média que tem suas aventuras – ou desventuras – narradas na obra.
A afetividade das memórias pode soar piegas para os leitores mais resistentes. Mas é justamente o que conquista aqueles dispostos a voltar aos dias em que ligar para o programa do Bozo, superar os dilemas do Jardim II e descobrir que se chega à África atravessando o mar eram os grandes desafios da vida. “Não sabíamos a que distância estávamos do nosso destino – o tio do meu amigo havia dito apenas que ‘indo sempre reto aqui’ dava na África, sem entrar em detalhes –, então resolvemos nos precaver: passamos em casa para pegar as pranchas de isopor e, após vinte minutos e um rolo inteiro de fita-crepe, conseguimos colar uma garrafa de Lindoia na frente de uma delas. Tudo pronto.”
Chegar ao fim do livro dá vontade de escrever a nossa versão, de buscar nas gavetas mais escondidas do cérebro tantos episódios cômicos, apavorantes e esquisitos quanto os que acabamos de ler. A sensação também é de estarmos envelhecendo. Ainda mais porque, depois de uma infância recontada com tantos detalhes, a impressão é de que a memória já nos deixa na mão. A quantidade de minúcias nas histórias é de dar inveja. Quem liga se é tudo verdade?
Nu, de botas, de Antonio Prata. Companhia das Letras, 140 páginas.
*Texto publicado originalmente em 6 de janeiro de 2015.