Foi bem difícil chegar à última página. Hibisco Roxo é uma história na Nigéria e da Nigéria, mas os personagens construídos por Chimamanda Adichie são capazes de gerar identificação em leitores do mundo todo. Com a empatia, vem dor, raiva e, vez ou outra, alívio. Quem lê também desabrocha junto com os adolescentes e as flores desse livro.
Kambili, uma garota na faixa dos quinze anos, é quem narra a história de como a vida dela um dia mudou. Irmã de Jaja, mais velho, é filha de uma mãe amorosa e que, na medida do possível, tenta protegê-la de um pai abusivo.
Fundamentalista católico, o pai é rigoroso ao extremo, cobra dos filhos bom desempenho na escola e um comportamento cristão exemplar; desconta as frustrações também na esposa. É um homem que rejeita os tradicionalistas, mesmo que isso signifique renegar o próprio pai pagão, e abnega todo tipo de sincretismo, parte essencial da cultura nigeriana, reproduzindo as verdades aprendidas com colonizadores europeus. Ele é figura dúbia, que divide tanto Kambili, quanto os leitores.
A repressão e o abuso tentam ser compensados por gestos do que ele entende por amor e proteção – e ele de fato parecer querer bem os filhos. A covardia de espancar a mulher e as crianças é contraposta à coragem de manter ativo o jornal do qual ele é dono, crítico à ditadura militar que se instaura na Nigéria. “Saí do meu quarto no mesmo segundo que Jaja saiu do dele. Ficamos no corredor, vendo Papa descer. Mama estava jogada sobre seu ombro como os sacos de juta cheios de arroz que os empregados da fábrica dele compravam aos montes na fronteira com Benin.”
Jaja e Kambili não têm amigos, fazem poucas atividades fora de casa, quase nenhuma sem a família. Cumprem um rígido cronograma que inclui horas diárias de estudo. São silenciosos e obedientes. Movidos pelo medo, não elevam a voz, sorriem pouco, só respondem o que lhes é perguntado. O irmão é mais ousado, as vezes desafia o pai e, diferentemente de Kambili, não nutre por ele qualquer afeto gentil. “Os olhos de Jaja brilharam quando ele falou dos hibiscos, quando os tirou da geladeira para que eu pudesse tocar os galhos frios e úmidos. Ele contara a Papa sobre eles, mas mesmo assim os colocou rapidamente de volta na geladeira quando o ouviu se aproximando.”
As mudanças são semeadas quando os dois, sob a justificativa de fazer um passeio católico, vão a outra cidade passar uns dias na casa de tia Ifeoma, professora universitária, irmã do pai. Eles convivem com três primos irreverentes, que se sentem à vontade para rir alto e reclamar, algo que parecia impensável. Ainda se deparam com uma realidade que foge dos padrões estabelecidos dentro dos muros do casarão em que foram criados com todos os tipos de luxo.
Descobrem a crise política e econômica de um país assombrado pela repressão ditatorial, infestado pela corrupção, tomado por greves e protestos. Encontram uma Nigéria em que as pessoas batalham para conseguir se alimentar, racionam água, se apertam em pequenos cômodos… O choque é social, cultural, emocional. Mas dele desabrocha uma nova perspectiva. O hibisco roxo que dá nome ao livro é o símbolo da transformação na qual mergulham Jaja e Kambili.
A tirania aparece sob vários prismas, em micro e macrocontextos, sempre com crueza. A violência, da mesma forma, é abordada dentro e fora de casa, das práticas físicas à aniquilação de valores. Chimamanda é habilidosa. Levanta bandeiras sem fazer panfletos, desperta questionamentos sem expor perguntas, desafia e critica sem elevar o tom. Com um texto firme, fluido e direto, a escritora nos presenteia com uma obra belíssima e implacável, sem perder a sutileza da entrelinha.
Hibisco Roxo, de Chimamanda Ngozi Adichie. Tradução de Julia Romeu. Companhia das Letras, 321 páginas.
*Texto publicado originalmente em 7 de junho de 2016.