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A tetralogia napolitana, de Elena Ferrante

Às vezes, a história de duas amigas não é a história de duas amigas. Ou não é só. Nesse caso, a história de duas amigas é um descritivo cheio de minúcias da sociedade italiana, das transformações sociais e econômicas na Segunda Guerra e depois dela, um tratado sobre a linguagem e um questionamento sobre a condição feminina e o machismo.

Elena Greco é a narradora das cerca de 1500 páginas que compõem os quatro volumes da série napolitana. Elena Greco é também Lenu, amiga de Raffaela Cerullo, Lila. Lenu e Lila nasceram em um bairro pobre de Nápoles, na década de 1940. Cresceram juntas e dividiram ali as primeiras brincadeiras, os primeiros amores e os primeiros livros. Lila é brilhante, mas é Lenu quem não desiste nunca de estudar. É ela também quem publica um livro que a faz reconhecida. Mas isso vem depois. Antes, há os primeiros conflitos, as primeiras dúvidas, as primeiras palavras e os primeiros silêncios.

Lenu e Lila são inseparáveis nos dois primeiros livros. A Amiga Genial e História do Novo Sobrenome contam a infância e a juventude das amigas. Elena narra sob a justificativa de que a palavra é o que fica depois que a gente vai. Ela conta essa história porque Lila sumiu – é o que sabemos no início do primeiro livro, quando o filho dela pede a ajuda de Lenu, já velha, para encontrá-la. É por isso que a tetralogia começa, que Elena Greco volta às memórias para registrá-las no papel. Se não há mais o corpo, as palavras são o que restam.

Lenu descreve a relação com Lila em detalhes. Um vínculo ora generoso, cheio de incentivos e cuidados, ora competitivo, cheio de provocações e seduções. As duas são complementares, ao mesmo tempo em que são oposições. Lenu às vezes se sente manipulada, comandada pela amiga mesmo quando tenta se opor. Consciente do quanto eram simbióticos esses afetos, às vezes tinha dúvidas se tomava decisões para agradar Lila ou para incomodá-la. Podia ser os dois. Ou podia ser só para ter certeza de que ocuparia um lugar na história. “Lila era má: em algum lugar secreto de mim, eu continuava a pensar isso. Ela me mostrara que sabia ferir não só com as palavras, mas que também saberia matar sem hesitação, e mesmo assim suas potencialidades agora me pareciam uma ninharia. Eu me dizia: ela vai desatar algo ainda mais nefasto, e recorria à palavra malefício, um vocábulo exagerado, que me vinha das fábulas de infância.”

No terceiro e no quarto volumes da série, História de Quem Foge e de Quem Fica e História da Menina Perdida, Lila e Lenu são adultas, não mais tão inseparáveis e tomam caminhos diferentes. Lenu sai de Nápoles para continuar estudando; Lila fica. Lenu circula entre intelectuais; Lila trabalha em uma fábrica e flerta com o movimento operário. Lenu muda-se para o norte, uma Itália rica, associada à industrialização e ao progresso; Lila fica no sul, uma Itália pobre, associada às tradições. Entre idas e vindas, casamentos e separações, filhos e novos filhos, Nápoles segue sendo o ponto de encontro. Para Lenu, a cidade soa agora estranha, alheia ao que ela construiu. Para Lila, Nápoles segue sendo símbolo do pertencimento, do domínio sobre a própria vida.

Mas Nápoles é apenas a geografia dos encontros (apenas entre aspas, já que aqui a cidade é um personagem). A sintonia, quando ela vem, está na resistência. Lenu e Lila são sobreviventes – não vítimas, mas resultados das próprias escolhas para seguir vivendo em um cenário bruto e opressor. Ainda que por percursos distintos, as duas amigas deram os passos necessários para resistir. Uma negando o feminino, lutando contra ele diariamente; a outra, mesmo entre tantos conflitos, tentando acolhê-lo. Não à toa a aproximação de Lila e Lenu depois de anos de silêncio e distância, vem quando as duas descobrem estarem grávidas. “Os meses de gravidez, apesar das preocupações, passaram rápido para mim, e muito lentamente para Lila. Várias vezes tivemos de constatar que experimentávamos um sentimento de espera muito diverso. Eu dizia frases do tipo: estou no quarto mês; ela, frases como: ainda estou no quarto mês. É verdade, a cor de Lila logo melhorou, seus traços suavizaram. Mas nossos organismos, mesmo sendo submetidos ao mesmo processo de reprodução da vida, continuaram sofrendo suas fases de maneira diferente, o meu com zelosa colaboração, o dela, com desanimada resignação.”

Autora misteriosa que usa esse pseudônimo para ocultar a verdadeira identidade, a italiana Elena Ferrante é ótima com as palavras. Escolhe aquele jeito de escrever que a gente lê como se os tomos fossem fininhos, breves. Nem parece que passaram 1500 páginas. A escritora também gosta de nos provocar com os títulos. Em A Amiga Genial, levamos o livro todo para saber, afinal, quem é a genial. Terminamos sem saber bem. Assim como em História da Menina Perdida o leitor não tem certeza se o título faz referência a quem perdeu o rumo, quem perdeu a vida, ou quem se perdeu – qual das tantas meninas que se perderam nesses quatro volumes.

Um romance de formação. Um romance social. Um romance histórico. A série napolitana é tudo isso. Os livros escritos por Elena Ferrante percorrem a segunda metade do século XX e chegam ao início do XXI com reflexões reais e cruas. Não que a obra se proponha a questionar, mas ao narrar com tanto realismo e com alguma violência, acaba colocando muitas instituições contra a parede. Inclusive o patriarcado. Aliás, parece uma intersecção do romance com a vida real quando a série napolitana vira um fenômeno de vendas, recebe as deferências cabidas à boa literatura, e as especulações se voltam para a possibilidade de Elena Ferrante ser um homem.

O leitor perde muito lendo a série napolitana, não vou mentir. Perde o sono, perde o conforto, perde a presença. É um luto quando os livros terminam, com a ausência de Lenu e Lila. Mas o que ele ganha nem se compara. O leitor ganha a possibilidade de um fim, de acompanhar uma trajetória completa, de saber o que vem depois. É a própria narradora quem nos sentencia a volta à realidade, na última página do último livro: “Diferentemente do que ocorre nos romances, a vida verdadeira, depois que passou, tende não para a clareza, mas para a obscuridade.” Voltemos, então, às nossas confusas questões diárias que nunca saberemos como, nem quando vão se esclarecer, mas que podemos escolher como enfrentar – se resistindo ou não.

*Texto publicado originalmente em 6 de fevereiro de 2018.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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