Foi sem querer. Mas os livros que envolvem pais e filhos vieram em longa sequência da estante para a minha cabeceira. A Estrada, do norte-americano Cormac McCarthy, foi um deles.
O planeta está arruinado. Por um motivo que o narrador não nos revela, o mundo acabou, está tudo destruído. A vida já é escassa, a comida mais ainda; em compensação, sobra hostilidade. Os sobreviventes vagam por aí, tentando encontrar mantimentos para continuar a caminhada, e fugindo de agressores – nesse cenário distópico, que revela o lado sombrio dos instintos, todos são potenciais inimigos. Algumas passagens da obra são perturbadoras. Cenas que, mesmo só vistas na imaginação, são difíceis de esquecer. “O menino ficou deitado com a cabeça no colo do homem. Depois de algum tempo disse: Eles vão matar aquelas pessoas, não vão? – Sim. – Por que eles precisam fazer isso? – Não sei. – Vão comer elas?”
A falta de vida animal, a vegetação seca e o céu cinzento tornam o ambiente ainda mais inóspito. Nessa estrada, pai e filho caminham empurrando um carrinho de supermercado com artigos essenciais. Eles seguem para o sul, mais quente, para se proteger dos invernos rigorosos que dificultam ainda mais a sobrevivência. A proteção da criança é a motivação da insistência do pai, doente, em seguir adiante. Nas paradas, eles descobrem abrigos, prisões e grupos armados que sobrevivem praticando o canibalismo. Na versão do pai, ele e filho são o bem; muitos outros sobreviventes, o mal. “Está bem. Isso é o que os caras do bem fazem. Eles continuam tentando. Não desistem.”
Na constante oposição entre a bondade e a maldade humanas, batalha comum em cenários pós-apocalípticos, o menino aparece como uma esperança. Mais do que proteger sua integridade, na medida do possível o pai, que já relativizou a moralidade, tenta preservar também a compaixão e a generosidade que sobrevivem na criança. O desafio é fazer a benevolência infantil resistir, sem manter o garoto ingênuo a ponto de não reconhecer ameaças. Tudo isso sem sentimentalismos. Pelo contrário, A Estrada é narrado secamente, mas as imagens e os diálogos que se constroem emocionam inevitavelmente o leitor.
No centro de tudo, está a conexão entre pai e filho. Em meio ao caos, os esforços de sobrevivência reforçam o arquétipo do pai herói. Mas, no fundo, não tem a ver com heroísmo – a menos que consideremos heróis todos aqueles que não desistem. O que vem depois vai depender do pior e do melhor de que somos capazes. “Os rastros não ficam nas cinzas. Você mesmo disse. O vento sopra pra longe.”
A Estrada, de Cormac McCarthy. Tradução de Adriana Lisboa. Alfaguara, 234 páginas.
*Texto publicado originalmente em 15 de dezembro de 2015.