Não haveria início mais humano. É com a morte que Valter Hugo Mãe começa o livro. Quem morre é a irmã gêmea. Quem fica é Halla, a menina que sussurra a história ao leitor. Um cochicho que vem da Islândia, chega quase congelado. Halla é a menos morta, apenas um esboço de gente, é a que fica à espera do que vai nascer no lugar em que foi enterrada a semente da irmã. “Éramos gêmeas. Crianças espelho. Tudo em meu redor se dividiu por metade com a morte.”
O livro é o passar o tempo de Halla. Uma breve jornada existencialista, que termina com a personagem ainda jovem. Sem a irmã, a pequena narradora conhece a solidão. Descobre-se em uma casa de angústias, onde é mal quista pela mãe, uma senhora ignorante que enxerga pouco além do luto, culpa Halla pela morte da outra filha e tem sinais de mutilação no corpo; mas amada pelo pai, poeta que busca nas palavras refúgios para a dor da perda. “O meu pai desentristeceu-me. Prometeu que leríamos um livro. Os livros eram ladrões. Roubavam-nos do que nos acontecia.”
A narrativa é sua relação com a família, com o pequeno vilarejo, com um rapaz e, num elo pouco explorado na obra de Valter Hugo Mãe (agora com maiúsculas), até com Deus. O divino aparece como o desconhecido, que está escondido nas sutilezas ou bem à vista, tanto faz. “Cada coisa que se nos revelasse tornava-se humana. Apenas o que nos transcendia poderia ser deus. Aquela fundura nas rochas, toda infinita e terminante, transcendia-nos.”
A garota aponta ao leitor o luto e a culpa, os questionamentos e as descobertas que chegam com o amadurecimento, os descampados e os esconderijos da alma. Ora se deixa levar pela inércia, ora aproveita a solidão para desbravar o mundo e os outros. O leitor nota como as experiências transformam e desenvolvem a protagonista, que compartilha constatações e indagações cada vez mais maduras. Halla vive por ela e pela irmã, que as vezes é parceira, as vezes uma espécie de guia. Se a garota se conhece ao olhar para si mesma, também se conhece ao olhar para o que gêmea teria sido. “Beija a tua irmã, porque não a entendes mas ela sabe o que faz. Pensei. Está morta, sabe tudo.”
Sempre com muito lirismo e com belas imagens poéticas, Valter Hugo Mãe volta a escolher o protagonista para carregar muitas das dores do mundo. Halla, já tão cedo, arrasta um fardo cujo peso o leitor quase consegue sentir. A narrativa espanta como tantas vezes espantam-nos as crianças, com essa capacidade misteriosa de superar a ingenuidade para chegar às profundezas.
A Desumanização, de Valter Hugo Mãe. Cosac Naify, 151 páginas.
*Texto publicado originalmente em 14 de abril de 2015.