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Velórios

Rodrigo Melo Franco de Andrade é um ficcionista de carreira curta. Curtíssima. Um livro, nada mais. O autor foi o primeiro diretor do Iphan, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Deixou como legado literário a obra Velórios, de 1936. A primeira edição teve apenas 200 exemplares, pagos do próprio bolso. Mas logo o escritor se arrependeu, quis tirá-los de circulação. Felizmente, restaram alguns e novas edições vieram. Rodrigo foi contemporâneo e amigo de grandes modernistas. Foi Manuel Bandeira quem deu o título de Velórios e, segundo ele, dos oito contos da obra, apenas dois foram totalmente inventados.

O autor convida o leitor a participar de oito velórios, descritos, no geral, a partir de diálogos triviais. As palavras sem importância revezam o tom de drama, de comicidade e de melancolia que permeia as mortes desses personagens. Há pouco de tragédia e muito do que seria um conto do realismo machadiano, não fosse a ironia modernista que invade cada um desses rituais de morte. Haja papo furado em torno do caixão… ” – Quando eu venho para passar uma noite assim, nunca deixo de ser prevenido. Trago umas três carteiras de cigarro e outras tantas caixas de fósforo, porque conheço muito essas coisas. Todo mundo pega a fumar, na conversa, e não demora a acabar com o maço que traz no bolso. Daí mais um pouco está é filando da gente e não há cigarro que chegue.”

Em Velórios, há contos longos; outros breves. Em Quando minha avó morreu, o autor é econômico. Descreve em cinco páginas o conflito do jovem Totônio. De um lado, um adolescente desejoso de viver os prazeres da juventude, trancado no quarto para passar brilhantina no cabelo, preocupado com futilidades. Do outro, o Totônio que recebe a notícia da morte da avó e se veste de preto dos pés à cabeça para fazer jus ao que ele acredita ser um tamanho luto. “Considerei que luto por avó deveria ser forçosamente pesado. Não poderia se resumir num lacinho qualquer no braço. (…) E à medida que planejava vestir-me à altura das circunstâncias, uma excitação imensa foi se apoderando de mim.”

A história mais longa do livro é O Nortista, praticamente uma novela em 31 páginas. O “eminente deputado” Hermógenes Viana foi do Pará ao sul do Brasil para fazer carreira e fortuna. Ele viaja para um sítio no interior de Minas Gerais, acompanhado de um médico-assistente, para tratar a tuberculose que o aflige. O conto, narrado pelo médico, relata a relação sem empatia entre patrão e empregado, que se distanciam por seus sotaques e seus valores, ao mesmo tempo em que forçam certa intimidade. O médico se vê cada vez mais inserido na comunidade rural dos arredores, enquanto o patrão despreza com mais intensidade “a mesquinhez e a moleza daquela gente”. “De resto, cada um de nós vivia para seu lado o dia inteiro e restava pouco tempo para nos hostilizarmos.”

A edição da Cosac Naify ainda vem com alguns bônus: uma nota-prefácio de Pedro Dantas e posfácios que incluem uma carta de Mário de Andrade a Rodrigo M. F. de Andrade, e análises de Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda e Antonio Candido. Todos, de certa forma, embasbacados com o apurado senso de observação com que esse ficcionista descreve um velório à brasileira.

Velórios, Rodrigo M. F. de Andrade. Cosac Naify, 143 páginas.

*Texto publicado originalmente em 01 de setembro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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