Põe na Estante

Textos

Coração tão branco

A obra de Javier Marías estava em um canto remoto da minha estante, sem perspectiva de acessar a categoria de próximos. Mas o autor espanhol escalou alguns degraus no meu ranking de prioridades depois de ter recusado o Prêmio Nacional de Narrativas, oferecido pelo governo da Espanha, no fim de 2012. Os Enamoramentos foi o livro selecionado pelo júri na ocasião, mas Marías abriu mão dos 20 mil euros que receberia, dizendo se ver impedido de aceitar uma premiação de natureza “institucional, oficial e estatal.” Pois bem, ganhou minha atenção: fiquei curiosa. Inaugurei o escritor com Coração tão Branco, uma obra concluída em 1991 e lançada em 1992.

Antes, na ocasião do prêmio, havia dado um mergulho breve e raso no universo do autor, com a leitura de algumas entrevistas que ele deu. Conhecia, em teoria, algumas características de sua obra. Javier Marías é insistente em dizer que não quer ser original, pintar um retrato de seu tempo (mesmo assim, é hoje um escritor contemporâneo de grande destaque). O escritor conta que muito de suas influências vêm de Faulkner, por exemplo, o que já nos dá pistas de quão digressivos podem ser seus romances, com frases longas e cheias de apostos – característica que se confirma em Coração tão Branco, mas passa longe de tornar a narrativa cansativa. Por fim, em uma das entrevistas que li, Marías fala de seus personagens, que muitas vezes são desastres de pessoas. Suas criações têm algum toque autobiográfico, mas nem todos que aparecem nos livros são inspirados em personagens reais. As frequentes Luisas, por exemplo, não seriam baseadas em uma Luisa em especial.

Eis que em Coração tão Branco temos uma Luisa, a esposa de nosso protagonista. O intérprete e tradutor Juan acaba de se casar e não consegue se desprender do que ele chama de um pressentimento de desastre. Ele ainda não sabe, mas muito dessa intuição é herança. “É sabido que as mães choram e sentem algo semelhante à dor quando seus filhos homens se casam, talvez meu pai sentisse seu contentamento e também a pena que minha mãe, falecida, teria sentido.”

Juan é filho de Ranz, um especialista em arte que presta uma espécie de consultoria como perito – é pouco confiável, mas não importa: sua palavra final dá o veredicto sobre a autenticidade ou não de obras. Ranz é um exímio contador de histórias, mas fala pouco do passado matrimonial. Já foi casado três vezes e enviuvou em todas. O primeiro matrimônio é quase secreto, Juan nem sequer conhecia essa parte da história do pai e sabe menos ainda em que circunstâncias a primeira esposa dele morreu. A segunda e a terceira mulher eram irmãs – Teresa primeiro, depois a mãe de Juan. O protagonista pensava que a tia morrera de forma acidental, mas é o suicídio de Teresa, logo após a volta da lua-de-mel com Ranz, que abre o romance – o primeiro ato.  “Não quis saber, mas soube que uma das meninas, quando já não era menina e não havia muito tempo tinha regressado da sua viagem de lua-de-mel, entrou na casa de banho, pôs-se em frente do espelho, abriu a blusa, tirou o sutiã e procurou o coração com a ponta da pistola do próprio pai, que estava na sala de jantar com parte da família e três convidados.”

O livro, narrado em primeira pessoa, é a história das descobertas de Juan sobre ele mesmo. O passado se aproxima dele, mesmo que ele desconverse e que o silêncio o persiga; as histórias do pai são, em certa medida, histórias do filho e não há como se desvencilhar desse legado doloroso. O desafio do nosso protagonista é saber até onde falar e quando calar. “Este foi o conselho que Ranz me deu, foi um sussurro: – Só lhe digo uma coisa – falou. – Quando você tiver segredos ou se já os tiver, não os conte. – E, já com o sorriso de volta ao rosto, acrescentou: – Boa sorte.”

O que dirá, então, Marías sobre ouvir segredos sem virar cúmplice? Aí chegamos ao título do livro. Coração tão branco é um nome inspirado em Shakespeare, é parte de uma frase dita por Lady MacBeth depois que o marido assassina o rei Duncan. Para dividir o peso do crime com MacBeth, a mulher esfaqueia novamente o rei já morto para poder também sujar as mão de sangue, mas se envergonha de estar agora com um coração tão branco.

Um profissional das palavras, habilidoso com a narrativa oral, Juan se vê, muitas vezes, sem saber como dizer. Especialista em ouvir e absorver com agilidade, Juan não sabe bem como lidar com o que escuta. O medo de saber vem do medo de reproduzir, de fazer com que a história se repita. Em Coração tão Branco, o encontro da identidade está nas palavras. Não nos tornamos o que fazemos, mas o que contamos e o que nos contam. “Deixará de existir de todo logo logo, em todo caso, quando chegar a hora de Ranz, e Luisa e eu não formos capazes de recordar mais do que aquilo que aconteceu conosco e que fizemos, e não o que nos contaram ou aconteceu com outros ou outros fizeram (quando nossos corações não forem tão brancos).”

Coração tão Branco, Javier Marías. Tradução de Eduardo Brandão. Companhia das Letras (selo Cia. de Bolso), 267 páginas.

*Texto publicado originalmente em 02 de agosto de 2013.

Picture of Gabriela Mayer

Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

Compartilhe

Você também pode gostar

A tetralogia napolitana, de Elena Ferrante

Stoner, de John Williams

O passageiro secreto, de Joseph Conrad