A leitura deste conto faz entender por que Herman Melville é considerado o precursor de Kafka. Há muito de ilógico, de absurdo, a construção dos personagens é o que move o enredo e cada uma das figuras que aparece na história é caricata a ponto de ser vez ou outra real. Bartleby, o Escrivão é uma obra que instiga a crítica literária, a filosofia e até a psicologia. Todos os esforços para captar a essência do protagonista, que dá nome ao livro.
A edição da Cosac Naify transmite como é difícil acessar a alma de Bartleby. O livro vem costurado. Depois de vencer a primeira barreira, o leitor precisa ainda cortar as páginas que não vêm abertas (uma espátula de plástico acompanha a obra, justamente para essa tarefa); aí, sim, chega a etapa do texto, que também precisa ser desmembrado para chegarmos mais perto do escrivão. O narrador já nos avisa que a tarefa de conhecê-lo é cheia de percalços. “Aquilo que vi, espantado, com meus próprios olhos, é tudo o que sei a respeito de Bartleby, cujo relato farei a seguir.”
Quem conta a história é um advogado de Wall Street com trinta anos de experiência com copistas e escrivães, que tem um escritório com dois assistentes – Nippers (alicates) e Turkey (peru). Eles alternam momentos de bebedeira de um, com extrema irritação do outro. “Embora tivesse as minhas suposições quanto aos hábitos auto-indulgentes de Turkey, em relação a Nippers estive convencido de que, apesar dos seus defeitos em outros aspectos, era um jovem abstêmio. Mas na verdade a própria natureza parece ter sido o seu taberneiro, e quando nasceu foi impregnado por uma disposição tão irritadiça e alcoolizada que não precisava de nenhuma dose”. Para completar o escritório, um jovem contínuo, Ginger Nut (biscoito de gengibre).
Bartlebly é contratado para aliviar a carga de trabalho dos dois copistas (e quem sabe para trazer ares serenos ao ambiente profissional, sem surtos coléricos ou embriagados). Calado e pouco sociável, o protagonista realiza com muita eficiência o trabalho de escriturário. Demora alguns dias até que ele comece a se revelar um herói da pequena resistência – ou apenas um teimoso inveterado, com vontade de intrigar o chefe, os colegas de trabalho e nós, leitores. Bartleby passa a se recusar a atender aos pedidos do advogado. “‘Bartebly’, eu disse, ‘quando todos aqueles documentos forem copiados, vou conferi-los com você’. ‘Acho melhor não’. ‘Como assim? Claro que não vai continuar com esse capricho obstinado!’ Nenhuma resposta.”
A história é essa. Até o fim do livro, Bartleby mantém a síndrome do não. Mas como não dá chiliques – ao contrário, é irritantemente inexpressivo –, o chefe não sabe como reagir. Fica sem jeito de fazê-lo arredar o pé e acaba cedendo à inércia da negação. As intenções, os desejos e que dirá as paixões do escrivão ficam ocultas, como se não as houvesse. Talvez por isso não tiremos os olhos das páginas, queremos saber mais sobre esse personagem que inspirou tantas outras figuras literárias. O livro é curto e marcante. Fininho, cabe em qualquer canto da sua estante.
Bartleby, o Escrivão, Herman Melville. Tradução de Irene Hirsch. Cosac Naify, 37 páginas.
*Texto publicado originalmente em 2 de dezembro de 2013.