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As avós

Mais que merecido foi o Nobel de Literatura de 2007. Quem o recebeu foi a britânica Doris Lessing, que, na verdade, é nascida no Irã e, antes de ir para Londres, viveu também na Rodésia do Sul, hoje Zimbábue. Na ocasião do prêmio, destacou-se sua capacidade de contar e esmiuçar a experiência feminina. Transitando entre gêneros literários diferentes, a escritora nunca abandonou a questão das mulheres, das amarras sociais e culturais, sugerindo transgressões ora sutis, ora enfáticas. As Avós é um romance publicado em 2003, quando a autora tinha 83 anos. Doris Lessing está entre os escritores que se arriscam na proposta de quebras de paradigmas e desconstrução de papeis.

As Avós é a história de Roz e Lil, amigas de infância que nunca provaram a separação. “Duas meninas chegaram à escola no mesmo dia, na mesma hora, avaliaram uma à outra e tornaram-se amigas.” Casaram-se na mesma época, tiveram os filhos na mesma época e vivem em casas vizinhas, na bacia de Baxter, “uma bocejante baía cercada de rochas.” São casadas com Harold e Theo, e mães de Tom e Ian, respectivamente. Por razões diferentes, as protagonistas ficam sozinhas com os filhos adolescentes, com a tarefa de criá-los e mantê-los amáveis e encantadores. “As duas belas mulheres, juntas de novo como se os homens nunca tivessem participado da equação, continuaram vivendo com seus dois belos garotos, um deles um tanto delicado e poético, com cachos queimados de sol caídos na testa, o outro forte e atlético, amigos, como as mães tinham sido na idade deles.”

Ao contrário da tranquilidade que o cenário transmite, as relações nessas duas casas são conturbadas e surpreendentes. A maternidade, a amizade, a lealdade e a sexualidade estão juntas na narrativa, que flui de forma a impedir a dispersão de qualquer leitor. “E Tom, observador, sério, tentava entrar num acordo com essa dor, não sua, mas de presença tão próxima no amigo, seu quase irmão, Ian. ‘Eles são como irmãos’, as pessoas diziam. ‘Esses dois, eles podiam bem ser irmãos.’”

O livro começa em um café, no presente. As duas amigas, já avós, estão acompanhadas dos dois filhos e das duas netas. A chegada das noras, furiosas com alguma descoberta, desenrola a história, uma espécie de digressão, um conto breve sobre o passado, uma reavaliação da vida e dos relacionamentos desses personagens tão sedutores. “E a maneira como cuidavam das meninas, a tranquilidade e a competência deles. E a forma como as avós estavam sempre por perto, fazendo dos quatro, dos seis… mas onde estavam as mães, as crianças têm mães (…)”.

É um livro sem hora certa, sem tempo certo e sem jeito certo. Tudo é válido. Não há rótulos. O título, no fundo, soa irônico, porque o que Doris Lessing faz é justamente desconectar as imagens e as expectativas associadas a um papel. Diferentemente do olhar viciado e fragmentado, que tem dificuldade de enxergar pais, mães, irmãos, avós fora dessa função social, a obra contorna os personagens e coloca-os completos, sem censura. “(…) e então, por fim, compreendeu. Estava tudo claro.”

As Avós, Doris Lessing. Tradução de Beth Vieira. Companhia das Letras, 97 páginas.

*Texto publicado originalmente em 14 de outubro de 2013.

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Gabriela Mayer

Uma das fundadoras da Rádio Guarda-Chuva e uma das apresentadoras do podcast Café da Manhã, da Folha de S. Paulo. Também é colunista de literatura e gênero da revista AzMina e colabora como crítica para veículos como a própria Folha e a revista Quatro cinco um.

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