O tripé murakamiano não falha: suspense, amor e um jogo de antíteses e paradoxos que combinam vida e morte, sempre compassadas por aquilo que adia uma ou outra, o tempo. Sabia que seria assim com 1Q84 e, por isso, adiei ao limite da curiosidade a leitura do primeiro livro da trilogia, para fugir da expectativa prolongada pelo fim da história. Aqui no Brasil, uma versão americana, editada em um só tomo, está à venda, mas a tradução em português do livro do japonês Haruki Murakami, editada pela Alfaguara, foi dividida em três partes.
Murakami figura entre os principais nomes da literatura contemporânea e coleciona elogios da crítica. Sua originalidade é, de fato, inegável, assim como a capacidade de desenvolver personagens profundos, sempre consequências contundentes de um passado misterioso que se revela arrebatador ou, no mínimo, cruel. 1Q84 tem dois protagonistas, Tengo e Aomame (em japonês, significa “ervilha verde”). Os 24 capítulos nos quais se dividem a obra são dedicados a contar a história de cada um deles – metade dos capítulos para cada um, e, dada a convergência das trajetórias dos dois personagens, é possível que no segundo livro um mesmo capítulo abrigue o jovem e a jovem.
Tengo é professor de matemática em uma escola preparatória e editor de livros. “Ele próprio não tinha certeza se realmente queria se tornar um escritor profissional. (…) A única certeza era de que não conseguia ficar um dia sequer sem escrever.” O que é comum nos romances de Murakami, ele tem uma namorada mais velha, casada. Confuso e dominado por um editor mais experiente da companhia para a qual trabalha, Tengo recebe a missão de reescrever o misterioso Crisálida de ar, um romance fantasioso, com uma história cativante mas feito por uma jovem autora que tem dificuldades com as palavras. Aomame é professora de defesa pessoal e personal trainer, e esconde uma terceira função, secreta e perigosa. Tem um passado nebuloso, que se revela a conta-gotas. Os dois protagonizam frequentes encontros – breves ou duradouros – com personagens pouco transparentes, muito sugestivos e com dizeres e conselhos que pairam no ar. “- E – com o rosto voltado para o retrovisor, o motorista do táxi disse: – Nunca se esqueça de que as coisas não são o que aparentam ser.”
O rumo da história embala Tengo para o futuro e Aomame para o passado. E é assim que a história dos dois se aproxima – por uma distorção inexplicável do tempo e do espaço. À sombra de 1984, o romance distópico de George Orwell, a história de 1Q84 vai se confundindo com a de Crisálida de ar, no qual o Povo Pequenino, que parece poderoso e definidor, supostamente controla uma sociedade. Os episódios narrados pelo autor viram quase uma máquina do tempo, que deixa o leitor absorto em uma viagem que parece cada vez mais real, à medida que se enche de traços de fantasia. O destino desse passeio pelo tempo e pelo espaço é desconhecido. Talvez a resposta esteja nas referências literárias, nos acontecimentos recontados pelos jornais ou na trilha sonora que preenchem as páginas de 1Q84. “Enquanto refletia, a música de Janáček chegava ao fim com uma acalorada e ininterrupta salva de palmas da plateia.”
1Q84, de Haruki Murakami. Tradução de Lica Hashimoto. Alfaguara, 430 páginas.
Texto publicado originalmente em 08 de fevereiro de 2013.