Mia Couto é um caçador de palavras. Em uma história cheia de cenas e dizeres ásperos, o autor persegue as letras exatas para compor descrições sublimes, que, por mais agressivas, evaporam na forma de imagens delicadas. Para alguns, as associações e metáforas para explicar sentimentos e intuições podem soar como uma lista de frases de efeito; para outros, refletem uma capacidade de traduzir o que tantos de nós sentimos sem conseguir verbalizar. “De novo nos regíamos por essas leis que nem Deus ensina nem o Homem explica.”
A história acontece em Kulumani, uma aldeia aterrorizada por ataques de leões. O escritor mistura a narrativa ficcional com a experiência de ter presenciado, de fato, uma investida desses animais contra um vilarejo do norte de Moçambique. Em A Confissão da Leoa, como na vida real, as vítimas eram, na maioria, mulheres. E isso nada tem a ver com a preferência dos felinos por corpos femininos. É consequência dos trabalhos aos quais as habitantes de Kulumani são submetidas, obrigadas a se levantar de madrugada, buscar água no mato ainda escuro. Ou uma fatalidade associada ao fato de as mulheres se entregarem a essas feras para se livrarem de outras. Uma amostra de uma cultura que as esmaga. “É o que lhe dizia: uma mulher, aqui, não é ninguém…”.
São dois os narradores, que usam um artifício já conhecido na obra de Mia Couto. Mariamar, uma jovem moradora de Kulumani, e Arcanjo Baleiro, um caçador da capital convocado para matar os leões, dividem com o leitor seus diários. São duas versões de uma mesma história.
De um lado, relatos que vêm de dentro da aldeia, permeados pela cultura e pelas tradições dos moradores, baseadas em conhecimentos ancestrais. “Em Kulumani, todos idolatramos os nossos mortos, todos guardamos neles as raízes dos sonhos.” É na voz de Mariamar que ficam evidentes as peculiaridades da vida das mulheres, os percalços que elas devem superar para sobreviver, senão às mordidas dos leões, à violência e aos abusos cometidos dentro e fora de casa. “A minha nação já não é apenas a aldeia, nem sequer a minha casa: é este recanto solitário.”
Do outro lado, o caçador dá a visão masculina de um forasteiro, alguém que já esteve em outro lugar e conhece um mundo muito mais amplo do que aquela pequena aldeia. “Estes homens estão irmanados por uma mesma fragilidade: vivem condenados, à espera do golpe final. Durante séculos existiram à margem do mundo.”
É da violação que as mulheres sofrem, no entanto, que nasce a força feminina. Se quase todas as vítimas são mulheres, as feras mais famintas também são leoas. “Todos acreditam que são leões machos que ameaçam a aldeia. Não são. É esta leoa, delicada e feminina como uma dançarina, majestosa e sublime como uma deusa, é esta leoa que tanto terror tem espalhado em todas as vizinhanças.” Em tempos de estupros coletivos, abortos de fetos do sexo feminino e um abismo de direitos entre homens e mulheres em tantas sociedades, A Confissão da Leoa poderia ter como cenário tantos lugares que não Kulumani.
Não há surpresas. As confissões de cada narrador, que confrontam medos, culpas e sonhos, seguem a linha que virou marco de Mia Couto: personagens que estão em constante tensão com eles mesmos e em uma disputa crônica com uma realidade de opressão e violência. Mas cada livro dele que é posto na estante parece nos lembrar que o universo daquelas páginas, às vezes tão distante, está logo ali.
A confissão da Leoa, de Mia Couto. Companhia das Letras, 251 páginas.
Texto publicado originalmente em 22 de janeiro de 2013.